Índice
Introdução
Entre as formas de sujeição modernas, Pedro Pagni[1] entende que a dualidade entre a sujeição ao governo e a identificação voluntária a um processo de individuação há um terceiro elemento, uma terceira forma de constituição de sujeitos que cruza esta aparente oposição entre o “si” entendido como fabricação ou como entrega. Uma forma que expande a análise de Michel Foucault acerca dos processos de subjetivação.
Esta terceira forma tem como fundamento as elaborações de Maurizio Lazzarato sobre a sujeição maquínica. É interessante perceber que, para Lazzarato, há duas formas de individuação no capitalismo avançado, sendo que a primeira é definida pelo autor como sujeição social:
A sujeição social, ao nos prover de uma subjetividade, ao nos assinalar uma identidade, um sexo, uma profissão, uma nacionalidade, etc., produz e distribui papéis e lugares. Ele constitui uma armadilha significante e representativa à qual ninguém escapa. A sujeição social produz um “sujeito individuado” cuja forma paradigmática, no capitalismo neoliberal, é a do “empresário de si”. Todas as funções, todos os lugares que a sujeição distribui, devem ser assumidos como funções e lugares que nós escolhemos e nos quais nos realizaremos ao investir, como todo bom empresário, a integralidade de nossa vida.[2]
Trata-se, aqui, de descrever os dois processos assinalados no primeiro parágrafo: a sujeição social como um conjunto de processos sociais em que o sujeito é inserido numa estrutura e, ao mesmo tempo, é içado a se identificar com algum conjunto de imagens produzidas pela sociedade que lhe localiza.
Já a servidão maquínica é o processo de integração entre sujeito e objeto de tal maneira que ambos de confundem e os sujeitos assumem função, se transformam em peças, dentro de um sistema complexo de produção:
Na servidão maquínica, o individuo não é mais instituído como sujeito (capital humano ou empresário de si). Ao contrário, ele é considerado como uma peça, como uma engrenagem, como um componente do agenciamento “empresa”, do agenciamento “sistema financeiro”, do agenciamento mídia, do agenciamento “Estado Providência” e seus “equipamentos coletivos de subjetivação” (escola, hospital, museu, teatro, televisão, internet, etc.). O indivíduo “funciona” e é submetido ao agenciamento do mesmo modo que as peças de máquinas técnicas, que os procedimentos organizacionais, que os sistemas de signos, etc.[3]
Neste tipo de servidão, que atua concomitantemente aos processos de sujeição, o ser humano é produzido para ser um nó em processos de produção em que ele “funciona”. Ou seja, seu agenciamento é limitado a “entradas e saídas”, demandas e entregas.
Fala–se e utiliza–se os conceitos de “entradas” e de “saídas” que já não têm nada de antropomórfico. Os “sistemas homens–máquinas” (no plural) não podem ser considerados como um simples acúmulo de postos de trabalho “homem–máquina” (no singular), pois diferem em natureza da “díade” sujeito (homem)/objeto (máquina).[4]
Homem e máquina se unem na servidão maquínica, de tal maneira que homens são máquinas, parte de um processo de agenciamento em que a noção de pessoa já não unifica o que seria uma subjetividade: esta é vista na própria ação através dos agenciamentos, pois o sujeito é cindido entre todas as relações que o maquinizam, entre todos os processos em que ele se insere como peça, como parte, como funcionamento.
O objetivo deste artigo é expor a noção da sujeição maquínica como toma forma dentro da escola a partir do texto Subjetividade, biopoder e servidão maquínica na escola neoliberal de Pedro Pagni, parte de seu livro Retratos foucaultianos da deficiência e da ingovernabilidade na escola: do governo das diferenças a outro paradigma de inclusão.
A subjetividade no neoliberalismo
Na avaliação de Pedro Pagni, o sistema capitalista se mostru apto a sobreviver às suas crises, mas também a se adaptar a cada transformação social que surgia em seu núcleo. O argumento de que a necessidade de uma revolução seria o bastante num contexto de proletários miseráveis sem nada a perder não se mostrou verdadeiro nos países de capitalismo avançado, pois, a partir do século XX
viu-se não somente o modo de produção passar por diversas crises e sobreviver, demonstrando toda a sua plasticidade, como também o aprimoramento de suas formas de subordinação subjetiva, obrigado inclusive a certa adaptação ou flexibilização dos sujeitos.[5]
A partir de uma visão foucaultiana, é possível compreender que o neoliberalismo extrapolou os limites de uma racionalidade econômica e se extendeu até a vida individual e íntima, se transformando em um modo de existência em que o “empresário de si” surge como paradigma.
O paradigma do empresário de si é constrído a partir de um governo do outro que se transforma em um governo de si, ou seja, da prática de poder que envolve a internalização da responsabilidade de si sobre o próprio indivíduo, que se torna parte ativa de uma racionalidade econômica que ultrapassa os limites da esfera administrativa estatal e alcança a própria subjetivação. Foucault
procura desnaturalizar a maneira como esse autogoverno se estruturou em vista do governo do outro, da identificação consciente com um eu e da forma enigmática como esse si, que procura se ocupar, é fugidio e resiste às formas de autoconsciência, retornando ao pensamento antigo, medieval e aos auspícios da modernidade, para problematizar e indicar outras tradições abandonadas, vislumbrando produzir modos outros de subjetivação no presente.[6]
Ou seja, o ponta pé de Foucault foi buscar modos de subjetivação que tornassem a autoconsciência parte de uma prática de cuidado de si, como microforma de se colocar como resistência frente aos desígnios do poder. Lazzarato insere a noção de servidão maquínica fortalecendo o objetivo foucaultiano de busca por novas formas de se constituir, na medida em que delimita de maneira mais rigorosa um nível inédito de governamentalidade.
Enquanto a sujeição social implica na utilização das técnicas de governo para apropriar saberes, práticas discursivas e imagens de maneira que sirvam como base para a produção de sujeitos individuados e fixados a certas identidades, sexo ou profissão previsiveis e inofensivas. Não há como escapar, inicialmente, desta práticas de sujeição, pois elas nos inserem enquanto sujeitos na sociedade. Este tipo de sujeição é a entrada do indivíduo na sociedade enquanto sujeito.
Já a servidão maquínica não necessita constituir os sujeitos, não precisa adentrar à consciência, nem precisa estabelecer representações que intermedeiem as relações sociais. A servidão maquínica, terceira forma de constituição do sujeito, novidade se comparada às análises foucaultianas, atua em nível operacional. Ela explora subjetividades parciais, mas não as constitui globalmente; ela insere o homem nos elementos do maquinismo, mas não o mantém como sujeito frente ao objeto. O sujeito está, na servidão maquínica, inserido como parte de uma maquinaria complexa em que se situa como peça[7].
Estes três processos de governo se responsabilizariam “pela formação do sujeito individuado no capitalismo avançado e no neoliberalismo”[8], salienta Pagni.
Os signos mobilizados pela servidão maquínica não são necessariamente significados, pois processos operatórios podem atuar somente na sequência do significante, sem necessariamente prender um significado, já que a noção de funcionamento é relacionada diretamente às relações significantes, sendo que os significados podem assumir diferentes formas e, mesmo assim, manter o funcionamento no nível significante. Trata-se, assim, de uma relação sem significado fixo e, até mesmo, sem possibilidade no presente de ser significada. Os signos próprios da servidão maquínica podem ser assignificados.
O gestor dessa economia dos afetos, por assim dizer, não é mais a razão dos sujeitos ou a sua consciência, já que o cálculo de vida a subordinou econômica e instrmentalmente, todavia, são as imagens da mídia, as redes sociais, entre outros dispositivos da tecnologia moderna. São elas que comandam os sujeitos em termos de autogoverno subjetivo e racional, em que o mais importante é agir por reflexo, no âmbito micropolítico, para manter intacta, em termos macropolíticos, a dominação exercida pelo capital financeiro.[9]
O corpo, neste contexto, tende a ser controlado pela servidão maquínica de tal forma que se reduz a uma carcaça, a uma capa que encobre a carne humana, atingida por diferentes vetores humanos e não humanos de subjetivação. Um controle que se dá justamente pela necessidade do agir por reflexo e, assim, pela necessidade do agir enquanto parte do funcionamento, não enquanto sujeito consciente e crítico.
Escola
A servidão maquínica, com vista de uma adequação à sociedade neoliberal, é inserida na vida individual deste a infância a partir de uma educação pensada como investimento. Assim, a educação é parte de um planejamento para aumentar os lucros que podem ser obitdos através da especialização ou dos riscos a serem evitados por meio da construção de um caução educacional apropriado para a vida empreendedora.
Este tipo de educação tem como princípio o mapeamento das possibilidades de inserção do indivíduo nos processos de subjetivação neoliberais:
Tal mapeamento começa ainda na educação familiar, quando os pais veem os cuidados iniciais de seus filhos como uma espécie de investimento de longo prazo e onde possam dispor parte de um capital humano hereditário. Trata-se de investimento que é compreendido pelos pais desde o afeto que despendem, ocupando parte de seu tempo precioso, até as possibilidades de aprimoramento que podem ser ofertadas a seus filhos ou, melhor, investidas, dependendo do capital que têm acumulado.[10]
É interessante compreender que o biopoder é uma estratégia que visa controlar a população[11]. Esta é entendida como um conjunto de múltiplos sujeitos desejantes[12] e, justamente por isso, tem seu governo dificultado: a condução da conduta dos membros da população é sempre parcial, daí a necessidade de gerar processos de servidão maquínica.
Estes processos se situam numa sociedade baseada no consumo, que é o nível determinante da vida em sociedade para avaliar o sucesso ou fracasso da vida individual:
Afinal, é no consumo que os seus filhos realizariam seus desejos, mostrando-se bem-sucedidos, caso obtivessem a renda para tal e um capital humano diferenciado decorrente desse processo de empreendidmento de si, aprendido como um instrumento de sobrevivência e, ao mesmo tempo, propagado como uma promessa de libertação no neoliberalismo.[13]
Esse processo de empreendimento de si, da transformação da subjetividade em uma máquina autocentrada porém não autoconsciente, a escola tem um papel central: ela é estrategicamente inserida como ponto inicial da constituição de si num processo de servidão que, mesmo com completa adequação do aluno, ainda não há garantia de qualquer sucesso no objetivo de alcançar a liberação prometida. O aluno ordeiro ainda está comprometido com uma série de aulas, exames, e constante vigília de seu comportamento. O aluno responde porque memoriza, mas não reflete. Reflexão é substituída por reflexo. É justament pela incapacidade de alcançar o sucesso que
essa demanda exige uma educação continuada por toda a vida que, de um lado, evoca um constante empreendimento sobre si, com base na percepção, pelo sujeito, de suas falhas e da identificação dos déficits a serem corrigidos, em busca de uma perfeição que jamais virá, salvo com a extenuação da máquina corpórea, com o desgaste psíquico – que leva às raias da loucura, como uma patologia social.[14]
A escola neoliberal, assim, é regida por um tipo de poder que presta contas ao capitalismo financeiro e aos dispositivos de subjetivação que dele emergem.
A educação escolar consome boa parte das imagens, crenças e sentidos postos em circulação pela mídia, pelas redes virtuais, no presente. Reforça o já vigente em uma vida que vive e age por reflexo, ampliando a visão comum de que, na reflexão, os sujeitos se defrontam com o seu lado mais difícil, obscuro e temido.[15]
Um lado difícil que deve ser evitado, pois se defrontar essa obscuridade é se deparar com aquele que está fora da norma, com aquele que resiste aos processos de disciplinamento. Um outro que é estranhamente familiar.
Considerações finais
Por fim, o temor da reflexão é justamente a observação dos corpos desviantes que resistem à normalização. Esta observação gera, inclusive aos normatizados, certo deslocamento que pede um olhar demorado sobre a precariedade do outro. O movimento em que a reflexão é evitada
fez com que a escola funcionasse como um dispositivo de normalização individual dos corpos e de regulação da população, aprimorando a biopolítica, de sorte a disciplinar os ingovernáveis, a corrigir os incorrigíveis e a tornar civilizado o bárbaro, com toda a infinidade e a variedade de teorias, técnicas e práticas que se geram, nessa tensão.[16]
Talvez, somente uma nova escola possa dar vazão ao completo reconhecimento da alteridade, valorizando as experiências e reafirmando as tensões que são presentes em todas as relações sociais.
Referências
[1] PAGNI, P. Retratos foucaultianos da deficiência e da ingovernabilidade na escola: do governo das diferenças a outro paradigma de inclusão. Marília: Oficina Universitária, São Paulo: Cultura Acadêmica, 2023.
[2] LAZZARATO, M. Sujeição e servidão no capitalismo contemporâneo. Revista Cadernos da Subjetividade, n. 12, 2010, p. 168.
[3] LAZZARATO, M. Sujeição e servidão no capitalismo contemporâneo… p. 168.
[4] LAZZARATO, M. Sujeição e servidão no capitalismo contemporâneo… p. 169.
[5] PAGNI, P. Retratos foucaultianos da deficiência e da ingovernabilidade na escola: do governo das diferenças a outro paradigma de inclusão… p. 239.
[6] PAGNI, P. Retratos foucaultianos da deficiência e da ingovernabilidade na escola: do governo das diferenças a outro paradigma de inclusão… p. 241.
[7] PAGNI, P. Retratos foucaultianos da deficiência e da ingovernabilidade na escola: do governo das diferenças a outro paradigma de inclusão… p. 243.
[8] PAGNI, P. Retratos foucaultianos da deficiência e da ingovernabilidade na escola: do governo das diferenças a outro paradigma de inclusão… p. 242.
[9] PAGNI, P. Retratos foucaultianos da deficiência e da ingovernabilidade na escola: do governo das diferenças a outro paradigma de inclusão… p. 245.
[10] PAGNI, P. Retratos foucaultianos da deficiência e da ingovernabilidade na escola: do governo das diferenças a outro paradigma de inclusão… p. 246.
[11] FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 289-291.
[12] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População: curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 92-97.
[13] PAGNI, P. Retratos foucaultianos da deficiência e da ingovernabilidade na escola: do governo das diferenças a outro paradigma de inclusão… p. 246.
[14] PAGNI, P. Retratos foucaultianos da deficiência e da ingovernabilidade na escola: do governo das diferenças a outro paradigma de inclusão… p. 247.
[15] PAGNI, P. Retratos foucaultianos da deficiência e da ingovernabilidade na escola: do governo das diferenças a outro paradigma de inclusão… p. 249.
[16] PAGNI, P. Retratos foucaultianos da deficiência e da ingovernabilidade na escola: do governo das diferenças a outro paradigma de inclusão… p. 249.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.