Da série “Os loucos de Foucault“.
Índice
Introdução
cau·sa (Dicionário Michaelis on-line)
- Aquilo que determina a existência de uma coisa ou de um acontecimento; razão, motivo, explicação: “Não estamos no momento investigando as causas da morte do cidadão João Paz” (Érico Veríssimo).
- Aquilo que provoca o início ou determina a origem de algo; agente, origem, princípio.
- Razão pela qual se faz algo ou se provoca um acontecimento.
As causas de uma loucura são relacionadas ao corpo, à alma, são visíveis na superfície do corpo, são visíveis na conduta, são investigadas a partir de um olhar detalhado no tripé corpo-alma-cognição. As causas próximas estão inseridas no corpo e afetam a alma e a estrutura cognitiva, a estrutura que funciona como condição para compreender, entender e aprender sobre a realidade como ela deveria ser compreendida, entendida e aprendida.
O entendimento sobre as causas próximas é relevante na constituição do discurso acerca da loucura na Idade Clássica. Através deste artigo, perceberemos como a percepção das paixões teve influência nas considerações sobre o desenrolar próprio da loucura e em suas causas próximas.
Qualidades
O sistema de causas próximas é construído a partir de um movimento que parte da percepção e caminha para a explicação. Um sistema de causalidade que movimenta as qualidades dos elementos em jogo, que transforma em coisas os valores que estavam armazenados como juízos morais. É interessante citar Thomas Sydenham, médico inglês do século XVII:
A força da alma, diz Sydenham, enquanto está fechada neste corpo mortal, depende principalmente da força dos espíritos animais, que lhe servem de instrumentos no exercício de suas funções e são a porção mais fina da matéria, e aquela que mais se aproxima da substância espiritual. Assim, a fraqueza e a desordem dos espíritos causa necessariamente a fraqueza e a desordem da alma, tornando-a um joguete das paixões mais violentas, sem que ela possa de algum modo resistir.[1]
A ética burguesa em ascensão é transformada em dinâmica nas transformações qualitativas. Como numa comunicação direta e instantânea, alma e corpo trocam impressões, trocam passagens, trocam toques e influências.
Entre as causas próximas e seus efeitos se estabelece uma espécie de comunicação qualitativa imediata, sem interrupções nem intermediação; forma-se um sistema de presença simultânea, que está do lado do efeito qualidade percebida e do lado da causa imagem invisível. E, de uma para outra a circularidade é perfeita: induz-se a imagem a partir das familiaridades da percepção; e deduz-se a singularidade sintomática do doente a partir das propriedades físicas atribuídas à imagem causal.[2]
A transformação na Idade Clássica se refere à exclusão dos elementos imaginários que fundamentavam a explicação mecânica da loucura através das paixões: a estrutura se torna linear e deixa de ser circular em relação ao elemento imaginário, ela passa a se organizar frente a uma percepção organizada e as causas passam a ser entendidas “pura e simplesmente” como fato de antecedência.
A patologia das fibras nervosas é exemplo de Foucault para observação das causas próximas:
Não que a qualidade e a imagem sejam escorraçadas dessa nova estrutura da causalidade próxima; mas elas devem ser investidas e apresentadas num fenômeno orgânico visível que possa vir disfarçado, sem o risco de um erro ou do retorno circular como fato antecedente.[3]
Nas observações acerca da fisiologia das fibras há pouca clareza sobre as relações entre a alma e as paixões. No entanto, ainda há uma consideração em forma de imagem que coloca a alma como elástica, necessariamente flexível. Tudo se passa como se um foco fisiológico das fibras contribuísse com uma percepção objetiva das causas próximas da loucura. Entretanto, a “alteração que serve de causa imediata para a loucura não é, propriamente falando, perceptível; ela é ainda, no máximo, uma qualidade palpável, quase moral, inserida no tecido da percepção”[4].
E assim se desenvolve uma maneira de se entender as causas próximas em conjunção com uma segunda percepção:
Trata-se, paradoxalmente, de uma modificação puramente física e mesmo, muito freqüentemente, de uma modificação mecânica da fibra, mas que só a altera aquém de toda percepção possível e na determinação infinitamente pequena de seu funcionamento. Os fisiólogos que vêem a fibra sabem muito bem que não se pode constatar sobre ela ou nela nenhuma tensão ou nenhum relaxamento mensurável […] Mas os médicos e os práticos também vêem, e vêem coisa diferente: vêem um maníaco, músculos contraídos, um ricto no rosto, os gestos duros, violentos, responder com a mais extrema vivacidade à menor excitação; vêem o gênero nervoso levado ao grau último da tensão. Entre essas duas formas de percepção, a da coisa modificada e a da qualidade alterada, reina o conflito, obscuramente, no pensamento médico do século XVIII. Mas aos poucos a primeira forma predomina, não sem levar consigo os valores da segunda.[5]
- Primeira forma, a da coisa modificada: “Mas os médicos e os práticos também vêem, e vêem coisa diferente: vêem um maníaco, músculos contraídos, um ricto no rosto, os gestos duros, violentos, responder com a mais extrema vivacidade à menor excitação”;
- Segunda forma, a da qualidade alterada: “Trata-se, paradoxalmente, de uma modificação puramente física e mesmo, muito freqüentemente, de uma modificação mecânica da fibra, mas que só a altera aquém de toda percepção possível”.
A hegemonia da primeira forma pode ser observada em Pierre Pomme e seu Traité des affections vaporeuses des deux sexes em que descreveu sua experiência imediata com o corpo humano e, ironicamente, fortaleceu a estrutura de causalidade proposta pelos fisiólogos (mesmo acreditando superá-la). Vale dizer que o autor relatava ter visto e ouvido os estados de tensão no corpo humano, o que não era visto pelos fisiólogos:
Debruçado sobre o corpo de um paciente, ouviu ele as vibrações de um gênero nervoso demasiado irritado; e depois de tê-lo macerado na água à razão de doze horas por dia durante dez meses, viu que se separavam os elementos ressecados do sistema e caíam na água “porções membranosas semelhantes a porções de pergaminho empapado”.[6]
Uma estrutura linear de causalidade e pautada nas modificações físicas ganhava espaço na percepção das causas próximas da loucura.
Fisiologia
A busca da causa próxima, por fim, já não era feita de uma descrição minuciosa das relações entre os efeitos e os valores essenciais que carregam numa comunicação qualitativa. No decorrer da Idade Clássica, a causa é diminuída a uma significação transposta: “trata-se apenas de encontrar, para percebê-lo, o evento simples que pode determinar, do modo mais imediato, a doença”[7].
Desta forma, na proximidade imediata junto a alma designada através do termo “sede da alma”, o cérebro passa a ser o elemento em que o olhar do pesquisador deverá observar alterações, perturbações anatômicas e fisiológicas.
A causa da loucura, portanto, deve ser uma alteração visível desse órgão que é o mais próximo da alma, isto é, do sistema nervoso e, tanto quanto possível, do próprio cérebro […] A causa será encontrada quando se puder designar, situar e perceber a perturbação anatômica ou fisiológica – pouco importa sua natureza, pouco importa sua forma ou a maneira pela qual ela afeta o sistema nervoso – que está mais próxima da unção da alma com o corpo.[8]
Assim as pesquisas anatômicas sobre a loucura na Idade Clássica devem adquirir sentido. As descrições qualitativas que versam sobre as pressões imaginárias e já carregavam valores que lhe davam um sentido circular e pré-determinado ainda continuavam a ser produzidas, mas descrições sobre “o cérebro dos maníacos seco e quebradiço, e o dos melancólicos úmido e congestionado de humores”[9] começaram a ser produzidas. A qualidade (como a secura ou umidade do cérebro) deve ser percebida num suporte de percepção, deve ser percebida e medida: o cérebro não é mais contrapartida do estado da alma. O estado do cérebro revela a alteração essencial que causa a loucura.
Considerações finais
Das passagens qualitativas às observações anatômicas e fisiológicas, o entendimento sobre a loucura e sua relação com o corpo e a alma caminhou para a desconsideração paulatina do simbolismo próprio das qualidades para a consideração passível de ser medida das alterações cerebrais. Esta nova estrutura de causalidade linear será determinante na percepção da loucura na formação discursiva da Idade Clássica:
Entre essa alteração e os sintomas da loucura não existe outro elo de pertinência, outro sistema de comunicação além de uma extrema proximidade: a que faz do cérebro o órgão mais próximo da alma […] Corpo e a alma numa ordem de vizinhança e sucessão causal que não autoriza nem retorno, nem transposição, nem comunicação qualitativa.[10]
O cérebro como espaço de alterações que causam a loucura quando o acometido está acordado e geram sonhos quando está dormindo. O cérebro passa a ser mapeado, setores são categorizados, movimentos são percebidos. Enfim, as condições de possibilidade para uma ciência materialista e organicista são postas ao longo da Idade Clássica. O corpo já não passa a ser mais considerado em sua totalidade para a observação da loucura: o cérebro, órgão – e objeto – privilegiado, que fornece a base necessária para uma aproximação perceptiva na loucura.
Referências
[1] SYDENHAM, Thomas. Dissertation sur l’affection hystérique. IN FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 9ª edição, 2012, p. 216.
[2] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 9ª edição, 2012, p. 216.
[3] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 217.
[4] Ibidem.
[5] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 217-218.
[6] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 218.
[7] Ibidem.
[8] Ibidem.
[9] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 220.
[10] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 220.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.