Da série “Os loucos de Foucault“.
Índice
Introdução
qui·me·raa
substantivo feminino
- MIT [com inicial maiúscula] Monstro da mitologia grega, com cabeça de leão, corpo de cabra que, como um dragão, se dizia lançar fogo pelas narinas.
- POR EXT Qualquer animal fantástico representado pela composição de partes de animais diferentes.
- ARQUIT, ESCULT, PINT Pintura ou escultura de monstro ou animal fantástico e grotesco usada como elemento decorativo ou arquitetônico.
- FIG Criação da imaginação; ficção, ilusão.
- POR EXT Fantasia geralmente impossível, irrealizável; devaneio, sonho, utopia: “[…] tinha o aspecto dessas pessoas que se habituam a viver no mundo da fantasia, e que, sentindo-se como aturdidas quando descem à realidade, refugiam-se em suas quimeras”.
- POR EXT Algo sem unidade e coerência; absurdo, despropósito, disparate, incoerência: “Mas, como é que ele tão sereno, tão lúcido, empregara sua vida, gastara o seu tempo, envelhecera atrás de tal quimera?”.
A loucura não surge através da organização arbitrária das imagens (das quimeras) percebidas por um indivíduo: transforma-se em desatinado quem se aprisiona nas imagens, de tal maneira que a suposta liberdade que o arbitrário sugeriria (na quebra da ordem da realidade) se faz tão intensa que passa a normatizar a existência a partir de uma condição irreal.
Exemplo: é possível ter um sonho intenso de falecimento e, ao acordar, questionar-se sobre estar mesmo morto ou vivo. O questionamento sobre a imagem da morte já é uma denúncia de sua irrealidade. Não se está louco. A loucura emerge quando se afirma a condição de morto e quando se faz valer o conteúdo da afirmação. Ou seja, a loucura aparece com o sujeito que se vê morto e, por se ver morto não come, na medida em que mortos não comem. Por consequência, morre-se de inanição e a imagem cristalizada em afirmação sobre si, não em denúncia, realiza-se[1].
Portanto, a loucura está para lá da imagem, e no entanto está profundamente mergulhada nela, pois consiste somente em deixar que valha espontaneamente como verdade total e absoluta. O ato do homem razoável que, acertadamente ou não, julga verdadeira ou falsa uma imagem, está para lá dessa imagem, ele a ultrapassa e a avalia em relação àquilo que não é ela; o ato do homem louco nunca ultrapassa a imagem que se apresenta; ele se deixa confiscar por sua vivacidade imediata, e só a sustenta como sua afirmação na medida em que é envolvido por ela.[2]
A imagem, assim, é central na medida em que é transformada em realidade através de um ato específico, mas não é suficiente. O objetivo deste artigo é expor a visão de Michel Foucault sobre as quimeras da loucura baseado na relação do delírio e da imagem estabelecida no livro História da Loucura na Idade Clássica.
O ato do delírio
O ato próprio do delírio é aquele que afirma a imagem. Trata-se de um ato de crença que, ao afirmar a imagem, raciocina e se insere cada vez mais fundo em sua lógica.
O homem que imagina ser de vidro não está louco, pois todo aquele que dorme pode ter essa imagem num sonho. Mas será louco se, acreditando ser de vidro, concluir que é frágil, que corre o risco de quebrar-se e que portanto não deve tocar em nenhum objeto demasiado resistente, que deve mesmo permanecer imóvel, etc. Este raciocínio é o de um louco, mas deve-se observar que, em si mesmo, não é nem absurdo nem ilógico.[3]
Ou seja, a loucura tem sua própria lógica que, a partir de uma premissa falsa, satisfaz as exigências do mais rigoroso lógico. As conclusões são razoáveis: se sou de vidro, então não devo encostar em objetos resistentes. Se não devo tocar em objetos resistentes, melhor ficar imóvel e garantir a proteção de meu corpo de vidro.
A loucura se desenvolve justamente na linguagem da razão, entretanto, diferentemente da razão, ela centraliza a imagem, lhe dá o prestígio necessário para ser o fio condutor do raciocínio. A linguagem da razão, quando aplicada à loucura, é “limitada ao espaço aparente que a loucura define, formando assim, ambas, exteriormente à totalidade e à universalidade do discurso, uma organização singular, abusiva, cuja particularidade obstinada perfaz a loucura”[4]. Assim, o raciocínio e a lógica se relacionam de maneira específica na emergência da loucura[5]:
- Consideremos um exemplo tomado do médico holandês Ysbrand van Diemerbroek, de seu texto Disputationes practicae, de morbis capitis: um homem, melancólico profundo, culpava-se pela morte do filho e, como castigo, considerava que Deus havia colocado um demônio em suas costas para tentá-lo como aquele que tentou Jesus Cristo;
- Para entender o delírio, Diemerbroek investigou suas supostas causas: o filho do acometido pela loucura havia ido nadar, levado por seu pai, e morreu afogado. O remorso e todo conjunto das convicções do sujeito somadas ao conjunto de imagens que constituem a fantasia são os elementos que compõem o delírio;
- A reconstituição do delírio fica, assim, mais clara: o homem acredita ter matado seu filho, pecado execrável por Deus. A partir disso, imagina que sua pena é ser entregue para Satã, pior suplício imaginável. O homem não vê o demônio, mas como foi entregue, como a lógica funciona, a imagem prevalece sobre a realidade;
- Assim, a loucura como analisada por Diemerbroek contém dois níveis: um manifesto, que pode ser visto pelos razoáveis simbolizado pela tristeza profunda do homem; já outro ligado à imaginação depravada do homem, ligada à razão desmantelada que conversa com o demônio.
Nestes dois níveis, há um aparente que pode ser identificado como desordenado; outro secreto, oculto, que contém a razão “libertada de todos os ouropéis exteriores da demência, colhe-se a paradoxal verdade da loucura”. Segundo Foucault, isto ocorre
num duplo sentido, uma vez que aí se encontra tanto aquilo que faz com que a loucura seja verdadeira (lógica irrecusável, discurso perfeitamente organizado, encadeamento sem falhas na transparência de uma linguagem virtual) e o que a faz ser verdadeiramente loucura (sua natureza própria, o estilo rigorosamente particular de todas as suas manifestações e a estrutura interna do delírio).[6]
A verdade da loucura está localizada justamente na possibilidade das imagens serem alvos de crença, de fé, de afirmação certa. O convencimento do louco revela tanto a lógica irrecusável como demonstra a expressão concreta da loucura em suas minucias. As imagens foram gravadas no cérebro do doente de Diemerbroek, seu corpo e sua alma estão comprometidos. Nesta percepção, “a linguagem delirante é a verdade última da loucura”[7].
A partir de uma liberação dos apetites, a loucura é convidada a participar dos desejos dos homens. A liberação do apetite da morte, mas também pode-se ilustrar a partir da liberação do apetite amoroso: os delírios amorosos apresentam de maneira mais franca como a loucura é delirante na medida em que o corpo segue as paixões desordenadas e se entrega ao desejo amoroso. Num mesmo momento: 1) o princípio moral que leva à culpabilização e 2) as expressões orgânicas que levam ou indicam o perigo de vida.
Considerações finais
Entende-se, assim, o delírio como momento para a expressão da verdade última da loucura, enquanto linguagem delirante que, num salto irônico, tem base na própria linguagem da razão. Convive com a linguagem da razão, pois é como que o espaço delimitado e excluído por ela: a linguagem delirante trabalha com a lógica irredutível e rigorosa da razão, mas através de um fio condutor ilusório.
A quimera, monstro fantasioso, não existe de fato, mas a crença firme do louco consolida uma base forte para a construção de uma lógica inflexível. Desta forma, a loucura se inicia no ato de crença, na medida em que ela é percebida enquanto recusa ética fundamental. O ato de crença ocasiona a repetição das imagens, das quimeras, até que o cérebro, gasto pelo impacto constante, as absorva e as transforme em um tipo de realidade.
Foucault cita Sauvages: “Aquele que vê turvo e vê em dobro não está louco. mas aquele que, vendo em dobro, acredita que existem dois homens, está”[8].
A loucura, vista do ponto de vista da linguagem delirante, é mais próxima a um discurso (de uma lógica retórica, conteudista e qualitativa) que a uma alteração. Ela se situa mais na relação entre os signos que compõem os fluxos das paixões e da moralidade que na observação clara de alterações materiais. Ou seja, a observação do louco é amparada pelo olhar moral que, após este primeiro contato, permite uma investigação própria através dos signos que emergem nos delírios e em toda a análise qualitativa das paixões, da alma e de suas relações com a loucura oferecida pela Idade Clássica.
Referências
[a] Dicionário Michaelis Online. Grifos meus.
[1] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 9ª edição, 2012, p. 232.
[2] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 232.
[3] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 233.
[4] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 234.
[5] Idem.
[6] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 235.
[7] Idem.
[8] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 212.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.