Da série “Os loucos de Foucault“.
Índice
Introdução
Ao longo de sua pesquisa sobre a loucura na Idade Clássica, Michel Foucault percebe certa centralidade em um tipo de percepção da loucura baseada no discurso delirante. Desta forma, a estrutura simples de um discurso poderia ser entendida como o núcleo da loucura no período.
Através deste entendimento, quatro características são pontuadas sobre a linguagem delirante, ou seja, sobre o discurso delirante que atua, na prática, como elemento central na percepção da loucura até o século XVII. O objetivo deste artigo é expor cada uma das características com base no livro História da Loucura na Idade Clássica.
I
“Na loucura clássica, há duas formas de delírio”[1]:
- Uma forma visível, aparente, sintomática e própria de algumas doenças com particular tendência à melancolia. De certa forma, é possível se dizer que há doenças com e sem o delírio, mas o delírio se manifesta em todos os casos e é parte integrante dos signos da loucura. “É imanente à sua verdade e desta constitui apenas um setor”, termina Foucault. Ou seja, apesar da possibilidade teórica de se falar sobre doenças com e sem este primeiro tipo de delírio, na prática, ele é recorrente e faz parte da verdade da loucura, apesar de não ser sua totalidade. Trata-se do delírio do pai que, ao se culpar pela morte do filho, conversa com demônios que lhe perseguem pelas costas;
- Uma forma oculta, nem sempre aparente e nem sempre consciente pelo próprio doente. Trata-se da formulação feita pelo próprio médico quando capta, através da busca pela origem da doença, sua lógica irracional. Ao contrário do ponto anterior, esta modalidade de delírio deve ser sempre presente e sempre será observada.
Desta maneira, o doente é preso em duas teias de significação: uma que lhe insere num delírio expressado diretamente pelo corpo, pela materialidade, pela confusão concreta, pela irracionalidade visível, mas que é – em tese – escapável, pois há a possibilidade teórica de se encontrar doenças ausentes deste delírio específico, ou seja, esta teia não é necessária – apesar disso, é sempre presente; outra que termina sua delimitação enquanto desatinado, pois desta vez, o signo da loucura é impetuosamente procurado e encontrado pelo sujeito que representa a autoridade na identificação ou julgamento da loucura: o médico, o juiz, etc.
Se a loucura não é confessada, é descoberta.
II
“Esse delírio implícito existe em todas as alterações do espírito”[2]: ou seja, a segunda modalidade de delírio, outorgada pelo outro do louco, pelo eu da razão, que encerra qualquer chance de defesa do louco ao estigma da loucura, trata-se de uma maneira de alcançar a forma geral da loucura, sendo assim, ancora o pensamento clássico na busca da loucura enquanto busca razoável de ser satisfeita.
A presença deste tipo de delírio em todos os casos é uma premissa necessária para se chegar até a loucura. No movimento inverso, é a certeza de se encontrar o delírio que autoriza a própria busca e lhe um sentido firme de pesquisa posteriormente científica. “Ali onde tudo o que se tem são gestos silenciosos, violências sem palavras, comportamentos estranhos, não há dúvida, para o pensamento clássico, que um delírio existe continuamente, subjacente, ligando cada um desses signos particulares à essência geral da loucura”, explica Foucault.
Desta maneira, a excentricidade observada não é indício de loucura, mas certeza de sua presença. Na presença de uma estranheza, caberá ao observador a responsabilidade de encontrar a lógica subjacente e oculta ao próprio louco que o leva a praticar sua estranheza.
III
“Assim entendido, o discurso abarca todo o domínio de extensão da loucura”[3]: apesar de serem elementos importantíssimos, corpo e alma não são os grandes focos da observação clássica sobre a loucura. Não se trata de observar alterações nos elementos constitutivos da existência: fica patente a prioridade de um discurso delirante na observação clássica sobre a loucura.
Sendo assim, as observações qualitativas ou anatômicas das causas próximas da loucura e as observações sobre o meio que delimitam o entendimento sobre as causas distantes da loucura são inseridas numa prática em que a explicação discursiva da loucura sentencia a verdade de sua existência.
Foucault interpreta assim a recorrência da vertigem listada nos livros dos nosógrafos da Idade Clássica enquanto há poucos registros para a convulsão histérica. Enquanto há uma afirmação delirante de que o mundo está realmente girando presente na vertigem, a convulsão não possibilita encontrar a unidade de um discurso. “Esse delírio [da vertigem] é a condição necessária e suficiente para que uma doença seja chamada de loucura”, conclui o autor.
IV
“A linguagem é a estrutura primeira e última da loucura”[4]: é forma como ela enuncia sua natureza. Na medida em que a loucura pode ser definida pela estrutura de um discurso, pode-se compreender que esta seria uma elaboração psicológica, entretanto, trata-se de um discurso que ascende sobre o corpo e sobre a alma. Um discurso que ascende sobre a “totalidade da alma e do corpo”.
Trata-se de um discurso que constitui aquele que o profere, mas que marca também o corpo daquele que é alvo da categorização. Uma linguagem que existe em quem é percebido como louco e em quem o percebe.
O movimento da paixão que se desenrola até romper-se e voltar contra si mesma, o aparecimento da imagem e as agitações do corpo que eram concomitâncias visíveis a ela, tudo isso, no exato momento em que tentávamos descrevê-lo, já estava secretamente animado por essa linguagem.[5]
O discurso delirante liberta a paixão de suas prisões e, em seus caminhos tortos pelo corpo e pela alma humana, a permite desencadear a loucura no homem.
Considerações finais
As quatro características descritas acima resumem o entendimento acerca do delírio que transcende o corpo e atinge a alma, que transcende a observação do corpo e atinge uma estrutura elementar da loucura mas, ao mesmo tempo, é animado pela sua existência.
“Neste delírio, que é ao mesmo tempo do corpo e da alma, da linguagem e da imagem, da gramática e da fisiologia, é que começam e terminam todos os ciclos da loucura”[6], e é justamente a crença firme no delírio (tanto da parte do doente como do observador), a lógica rigorosa de sua explicação, a imperiosidade de sua concretude que, por sua vez, também organizam cada elemento acima citado. O delírio é “ao mesmo tempo a própria loucura e, além de cada um de seus fenômenos, a transcendência silenciosa que a constitui em sua verdade”[7].
Referências
[1] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 9ª edição, 2012, p. 236.
[2] Idem.
[3] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 237.
[4] Idem.
[5] Idem.
[6] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 238.
[7] Idem.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.