Da série “A disciplina em Foucault”.
Índice
Introdução
O campo documental próprio do exame é o momento de introdução da escrita disciplinar. Na medida em que coloca os indivíduos em um campo de vigilância, assinala Michel Foucault, também os insere numa rede de anotações, de registros, de marcações na palavra ao longo do tempo. Todo procedimento de exame carrega consigo uma extensa produção de documentos com objetivo de guardar a informação recolhida, de torná-la útil enquanto arquivo para posteriores análises e conclusões. Aprimoramento e controle, acima de tudo.
A disciplina depende do desenvolvimento de um poder de escrita, do desenvolvimento de uma forma específica de registro que, de início, parece ser similar às técnicas de documentação administrativa, mas que cria inovações importantes através da prática do poder disciplinar.
Um novo tipo de escrita
Os métodos de “identificação, de assimilação, ou de descrição” entram como elemento novo na escrita disciplinar. O exército tinha necessidade de um tipo de criação organizada desta maneira, afinal, era necessário “encontrar desertores, evitar as convocações repetidas, corrigir as listas fictícias apresentadas pelos oficiais, conhecer os serviços e o valor de cada um, estabelecer com segurança o balanço dos desaparecidos e mortos”[1]. Já os hospitais, por sua vez, precisavam “reconhecer os doentes, expulsar os simuladores, acompanhar a evolução das doenças, verificar a eficácia dos tratamentos, descobrir os casos análogos e os começos de epidemias”[2]. Por fim, as escolas demandavam uma forma de “caracterizar a aptidão de cada um, situar seu nível e capacidades, indicar a utilização eventual que se pode fazer dele”[3].
Esta escrita atravessa a descrição de um espaço disciplinar próprio dos indivíduos que devem ser minuciosamente analisados e ter suas características documentadas. Além disso, também traça um tempo disciplinar próprio das possibilidades de evolução de cada quadro estabelecido: o aluno que pode ou não passar de etapa, o doente que pode ou não ter alta, o soldado que pode ou não se tornar sargento.
Os dados individuais registrados podem ser homogeneizados e analisados sob uma ótica cronológica, a partir de categorias previamente estabelecidas: a qualificação como código de registro, o sintoma como código médico, os comportamentos ou desempenhos como códigos militares ou escolares. Cada marcação documental inicia a entrada da esfera individual nas relações de poder, ou seja, da minuciosidade do poder sobre os corpos individuais, cada um posto em ordem num espaço determinado.
As outras inovações da escrita disciplinar se referem à correlação desses elementos, à acumulação dos documentos, sua seriação, à organização de campos comparativos que permitam classificar, formar categorias, estabelecer médias, fixar normas. os hospitais do século XVIII foram particularmente grandes laboratórios para os métodos escriturários e documentários. A manutenção dos registros, sua especificação, os modos de transcrição de uns para os outros, sua circulação durante as visitas, sua confrontação durante as reuniões regulares dos médicos e dos administradores, a transmissão de seus dados a organismos de centralização (ou no hospital ou no escritório central dos serviços hospitalares), a contabilidade das doenças, das curas, dos falecimentos ao nível de um hospital de uma cidade e até da nação inteira fizeram parte integrante do processo pelo qual os hospitais foram submetidos ao regime disciplinar.[4]
Ao tomar a disciplina médica como exemplo, entende-se que os processos de escrita permitem integrar dados individuais em sistemas cumulativos e evitar qualquer tipo de perda de informação. Assim, a partir de um registro geral é possível encontrar informações acerca de um indivíduo (e de sua situação completa) e a partir de um exame individual, pode-se repercutir os dados encontrados no conjunto inteiro já inserido no registro.
A escrita e o indivíduo
Na medida em que descreve o indivíduo, a escrita disciplinar o coloca no horizonte do poder e de sua eficiência. O louco é identificado através da documentação minuciosa de sua inadequação, de sua desordem. Conrado Sathler, em sua pesquisa acerca do laudo psicológico enquanto elemento de escrita disciplinar, declara que
A escrita dos laudos aponta para a lógica que rege a racionalidade moderna. Essa racionalidade se constitui pela lógica empírica, a lógica da observação de cada elemento, seja em suas partes ou em seu comportamento global e as dispõe em critérios estatísticos. Vale lembrar que a estatística se refere à ciência do Estado, que governa os corpos e as almas, que os enquadra em padrões de normalidade e segue daí outra conseqüência: a dicotomia entre a normalidade e a anormalidade, o adequado e o inadequado, o louco e o são, o racional e o irracional, o produtivo e o improdutivo.[5]
O louco, por sua vez, não é descrito para que se entenda seus traços específicos, mas para que seja mantido em sua evolução particular. A linha cronológica é de extrema importância para o registro, sendo seu guia em conjunto com a constituição de um sistema comparativo, em que deve ser possível comparar fenômenos globais, fatos coletivos[6]: descreve-se a evolução da loucura e compara-se a estatística da loucura enquanto fenômeno social. A escrita disciplinar é mecanismo de controle e governo do elemento chamado “população”.
Importância decisiva, consequentemente, dessas pequenas técnicas de anotação, de registro, de constituição de processos, de colocação em colunas que nos são familiares mas que permitiram a liberação epistemológica das ciências do indivíduo. Sem dúvida temos razão em colocar o problema aristotélico: é possível uma ciência do indivíduo, e legítima?[7]
A ciência do indivíduo é diferente da ciência da espécie e tem íntima ligação com um problema própria das ciências clínicas: a entrada do singular como elemento a ser analisado. Do doente como elemento de espécie, mas singular em sua constituição.
Considerações finais
A escrita disciplinar, o registro é elemento central para a constituição da ciência focada no indivíduo, para a formação das ditas “ciências do homem”. É o procedimento de compilação e construção de histórias individuais perfeito para análises comparativas e controle em processos disciplinares.
É através do registro que o poder vê sua eficiência, analisa seus pontos cegos, verifica seus sucessos e fracassos, seus êxitos e seus pontos a melhorar. Ao mesmo tempo, é o elemento que tem como efeito a constituição dos indivíduos dentro do campo de possibilidade dos desígnios do poder. Ao ser descrito detalhadamente e acompanhado em sua evolução singular, o indivíduo é marcado por um poder ligado ao conhecimento prático que lhe confere uso e promove a marcação eficiente também em outros indivíduos envolvidos no mesmo processo disciplinar ou localizados no mesmo espaço disciplinar.
Referências
[1] FOUCAULT, Michel. Os recursos para o bom adestramento IN Vigiar e Punir: o nascimento da prisão. 20ª ed. São Paulo: Vozes, 1999, p.157.
[2] FOUCAULT, Michel. Os recursos para o bom adestramento… p.157-158.
[3] FOUCAULT, Michel. Os recursos para o bom adestramento… p.158.
[4] FOUCAULT, Michel. Os recursos para o bom adestramento… p.158.
[5] SATHLER, Conrado N. Escrita disciplinar e psicologia: laudos como estratégia de controle das populações. Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, 2008, p.154.
[6] FOUCAULT, Michel. Os recursos para o bom adestramento… p.158.
[7] FOUCAULT, Michel. Os recursos para o bom adestramento… p.159.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.