Heterotopia em Michel Foucault – DROPS #49

A heterotopia é este outro lugar, este contraespaço que nasce no bojo do espaço estabelecido. Trata-se de um espaço que ao se refazer, refaz também os sujeitos que estão em seu interior. A prisão, por exemplo, é um espaço concreto delimitável, previsível, mas que é regido internamente por regras próprias e reconstitui internamente novas subjetividades.

Da série “As heterotopias“.

Heterotopias em Foucault

O objetivo deste drops é apresentar a noção de heterotopia em Michel Foucault. Uma noção pouco abordada em seus escritos, dita em algumas entrevistas e conferências, elaborada parcialmente, mas que eleva o número de possibilidades teóricas. trata-se de uma maneira específica de observar espaços e de perceber o tempo. De observar espacialidades e perceber temporalidades.


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Já comentei com calma e certo nível de detalhe cada característica da heterotopia nos trabalhos de Michel Foucault e colocarei todos os artigos já produzidos sobre o tema no fim deste texto. São mais de seis artigos dedicados a comentar o que é a heterotopia e quais são os princípios da heterotopologia, a possível ciência que estudaria estes espaços tão reais e tão utópicos.

A heterotopia é uma utopia real, portanto, é uma utopia localizada na nossa realidade, localizada no espaço social presente e concreto. Enquanto utopia, refere-se a um deslocamento do espaço real através de sua ressignificação e re-funcionalização. enquanto real, refere-se justamente à materialidade da noção. Não se trata, então, de uma noção que pertence ao mundo das ideias ou à força da imaginação. Não é uma noção que nos ajuda somente a pensar: esta noção serve para dar vida a um lugar que é real, mesmo teimando em ser utópico.

não há, provavelmente, nenhuma sociedade que não constitua sua heterotopia ou suas heterotopias. Está é, sem dúvida, uma constante de todo grupo humano.[1]

Há um tipo específico de relação entre os espaços consigo mesmos e com os sujeitos. Um tipo de relação que, ao ressignificar o espaço concreto, o refaz enquanto outro espaço. Enquanto espaço social alternativo, enquanto outro espaço discursivo. Segundo Kruger Junior:

O que o autor compreende como heteropias de crise, de desvio, de compensação, consistem em formas de se analisar o campo sociológico a fim de compreender como é possível que espaços existentes, dentro deste mesmo campo, possam se relacionar consigo mesmos e, ainda assim, desenvolverem uma concepção acerca da vida dos indivíduos e as transformações sociais concernentes a seus respectivos cotidianos.[2]

Um espaço previsível que se torna outro. A heterotopia é este outro lugar, este contraespaço que nasce no bojo do espaço estabelecido. Trata-se de um espaço que ao se refazer, refaz também os sujeitos que estão em seu interior. A prisão, por exemplo, é um espaço concreto delimitável, previsível, mas que é regido, internamente, por regras próprias e reconstitui, internamente, novas subjetividades. Sua entrada é controlada, sua saída é controlada, os sujeitos precisam se identificar externamente de outra maneira, com uniformes, e acabam saindo identificados internamente de outra maneira, como ex-presidiários.

Mas, ao mesmo tempo, o espelho é uma heterotopia: um espaço que reflete uma imagem falsa que se faz como real e, em sua realidade, se transforma em item de aproximação do sujeito concreto refletido. O tempo para e a percepção se torna lenta, o tempo para e a percepção pode ser infinita. Assim como a escola e o exército, salienta Kruger Junior:

a escola e a instituição militar como maneiras de atuação da heterotopia nos entremeios sociais, pois, segundo ele, esses espaços eram utilizados antigamente como formas de se expressar a própria sexualidade fora do constructo concernente à família.[3]

Até mesmo a defloração da virgem se insere neste movimento. Segundo Foucault:

E, para as jovens, pergunto-me se, afinal, a viagem de núpcias não constituía, ao mesmo tempo, uma espécie de heterotopia e de heterocronia: era preciso que a defloração da jovem não ocorresse na mesma casa onde ela nascera, era preciso que esta defloração ocorresse, de certo modo, em parte alguma.[4]

A heterotopia é um espaço que existe, mas não existe. Existe na realidade concreta, mas não existe na cotidianidade da vida dos sujeitos de fora. Quem está fora não o conhece, quem está dentro participa. Daí, o sujeito ser outro dentro da heterotopia. Daí, o sujeito nunca ser o mesmo após atravessar as fronteiras de entrada e, depois, de saída das heterotopias.

No fundo, a heterotopia é uma utopia que, falha em seu objetivo de permanecer no mundo das ideias, se insere agressivamente no mundo real. Batista assinala que

o filósofo francês procura, assim, demarcar o terreno da utopia e o da heterotopia, mostrando que essa última é uma utopia que encontrou ou tem um lugar no corpo sociopolítico.[5]

E isso é perigoso. As heterotopias podem movimentar relações de poder e símbolos que não só se diferem dos previsíveis no espaço social como também podem o ameaçar. Um espaço heterotópico é uma saída da institucionalidade, da normatividade social, é um espaço que também carrega uma face de liberdade.

Por ser um espaço marginal, por ser significado de maneira alternativa, o espaço heterotópico contém todas as possibilidades de servir como laboratório da rebeldia, da dissidência e da revolução. Junto com Perez, entendo que a heterotopia é um momento elevado de possibilidades e de criação:

As heterotopias se produzem pela negação do instituído e pela ressignificação do marginal (no sentido de estar à margem). Do ponto de vista da emancipação, podemos pensar a heterotopia como espaço marginal, que engendra ações rebeldes – práticas que se materializam de forma diferenciada em lugares instituídos. Toda heterotopia engendra um acontecimento novo.[6]

Por sua vez, Bom-Tempo sinaliza que as heterotopias são ligadas à sociedade, desta forma, mesmo como contraespaços, são espaços que se ligam à normatividade. A possibilidade alternativa pode ser oposta, contrária, mas nunca desligada da realidade social que se vive no cotidiano:

A assimilação do desenvolvimento conceitual de Foucault a respeito das heterotopias deixa evidente que se trata de um pensamento ligado a espaços e tempos, aos contraespaços e às formas de cada sociedade se distribuir em tais espaços-tempos, considerando as variações fabuladas por cada cultura.[7]

As heterotopias são possibilidades de nascimento de novos acontecimentos, de produção de novas relações de poder e novos saberes. Como laboratório de discursos e movimentos dissidentes que, em sua ontologia da rebeldia, se veem opostos à institucionalidade.

Detalhei a noção de heterotopia nos seguintes artigos:

  1. Os seis princípios da heterotopologia;
  2. Lugares que sempre existiram e existirão;
  3. São espaços que funcionam de maneira diferente;
  4. Um lugar real, vários espaços incompatíveis;
  5. Nestes espaços, o tempo tem outro ciclo;
  6. Não se entra de qualquer maneira;
  7. Criam espaços de ilusão;
  8. A descontinuidade do espaço presente;
  9. A heterotopia das colônias.

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Figuras do desatino

Referências

[1] FOUCAULT, Michel. O corpo utópico / As heterotopias. Tradução de Salma Tannus Muchail. 1ª edição, São Paulo: N-1 edições, 2013, p. 21-29.

[2] KRUGER JUNIOR, Dirceu Arno. Foucault: a heterotopia como alternativa para pensar o espaço social. Revista Enciclopédia de Filosofia, Universidade Federal de Pelotas. Volume 5, 2016, p. 23.

[3] KRUGER JUNIOR, Dirceu Arno. Foucault: a heterotopia como alternativa para pensar o espaço social… p. 24.

[4] FOUCAULT, Michel. O corpo utópico / As heterotopias… p. 21-29.

[5] BATISTA, Fabio. Foucault e as heterotopias: espaço, poder-saber. Griot: Revista de Filosofia, Amargosa -BA, v.20, n.2, p.1-16, junho, 2020, p.2.

[6] PÉREZ, C. L. V.. A lógica e o sentido da formação: heterotopias, acontecimentos e sujeitos. Revista do Departamento de Psicologia. UFF, v. 19, n. 1, p. 127–143, 2007.

[7] BOM-TEMPO, J. S.; GUIDO, H. A. DE O. Heterotopias das imagens: um combate aos clichês no filme Depois da chuva. Pro-Posições, v. 29, n. 3, p. 339–358, set. 2018.

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