Da série “Os loucos de Foucault“.
Índice
Introdução
Na Idade Clássica, Michel Foucault compreende que a insanidade passível de internamento está associada a uma percepção na forma da ética. Uma percepção que compreende no insano uma série de formulações acerca de sua integridade moral, do alinhamento entre suas práticas e as expectativas que se tem acerca de seu papel social[1].
O louco “pregador de cartazes”, o “grande mentiroso” e o de “espírito inquieto, triste e ríspido”[2] não são identificados e internados sem a percepção da loucura passar pela ordem da moral. Não há autonomia nas delimitações do objeto da loucura, da insanidade. “O que é designado nessas fórmulas não são doenças, mas formas de loucura que seriam percebidas como o extremo de defeitos“[3].
Defeitos morais, defeitos do espírito, defeitos da relação do sujeito com a realidade que o cerca e que lhe exige, às vezes, a bondade: em 1704 um abade nomeado Bargedé foi internado no hospital de Saint-Lazare, França, com aviso para que fosse tratado como os outros insanos, o que corroborava com a fraca distinção que a percepção da loucura, no século da grande internação, foi constituída. Seu erro: a usura, que lhe fez cair no defeito da avareza[4]. O objetivo deste artigo é comentar sobre a loucura na forma do defeito moral – com foco no criminoso -, percebida como erro ético, conforme abordado por Foucault na História da Loucura na Idade Clássica.
Crime e loucura
Acerca do julgamento do abade, a resposta de Foucault abre caminho para o entendimento do erro ético:
Nesse julgamento o que transparece não é a impotência de baixar um decreto de doença, tampouco uma tendência para condenar moralmente a loucura, mas sim o fato, essencial sem dúvida para compreender-se a era clássica, de que a loucura torna-se perceptível, para ela, na forma da ética.[5]
Não se trata de denunciar a forma não médica de entendimento da loucura, ou seja, de observar um momento não científico que, ao longo do progresso das ciências, foi solucionado no presente. Ao mesmo tempo, também não se trata de buscar a condenação moral (fruto de um tempo ainda não tocado pela ciência de ponta) e expô-la como uma descoberta macabra: o interessante é o fato de que esta forma da loucura se situa, como o era na Idade Clássica, em uma percepção ética, portanto, num erro propriamente ético.
Não se deve ficar surpreso diante dessa indiferença que a era clássica parece opor à divisão entre a loucura e a falta, a alienação e a maldade. Esta indiferença não pertence a um saber ainda muito rude, mas sim a uma equivalência escolhida de modo ordenado e proposta com conhecimento de causa.[6]
Loucura e crime, apesar de não se confundirem, também não se excluem, “implicam-se um ao outro no interior de uma consciência que será tratada, com a mesma racionalidade, conforme as circunstâncias o determinem, com a prisão ou com o hospital”[7]. Esta implicação, no texto foucaultiano, não ocupa um espaço de formulação meramente teórica de um ou outro comentarista da loucura na Idade Clássica; ela ocupa um espaço de produção: a implicação é parte das condições de possibilidade e, ao mesmo tempo, resultado concreto que permite a observação a respeito do desatino. Desta forma, o desatino não é visto numa ligação entre loucura e crime por conta de uma ou outra opinião pessoal da época: é visto numa ligação entre loucura e crime enquanto condição de possibilidade da existência da literatura sobre a loucura, das punições aplicadas sob a forma de tratamento ou cura, do próprio entendimento cultural, mas objetivo (e, também, subjetivo) da loucura. A loucura e o crime não estão unidos por uma visão equivocada da realidade, estão unidos para compor uma visão possível da realidade.
Há uma implicação específica que une loucura e crime em uma relação de mutualidade: o mais exaltado dos loucos terá, ao menos, uma parcela de maldade em seu espírito; o mais maldoso dos criminosos será, ao menos um pouco, desatinado. Uma loucura que se esconde e se revela na maldade, uma maldade que assombra a loucura como sua sinalização.
Tadeu Cousini, “mau monge” internado no Hospital de Charenton, França, no século XVI, é observado e julgado a partir dessa percepção de complementariedade entre loucura e erro ético. É considerado “ímpio quando raciocina e absolutamente imbecil quando deixa de raciocinar”[8], ou seja, quando utiliza (pois consegue) seu raciocínio, há de se observar construções de frases inteligíveis, mas afastadas de uma referência moral que deveria ser vista em um monge; quando deixa de utilizar o raciocínio, quando deixa de raciocinar de fato, passa a ser um incapaz. Por este motivo, mesmo compreendendo que sua pena por ser espião já poderia ser revogada, afinal, vive-se momento de paz, ele é mantido preso pela “situação de seu espírito e a honra da religião”. Sua loucura não é expressa por uma inabilidade em raciocinar, mas no resultado decepcionante de seu raciocínio ou da recusa em raciocinar.
Ao contrário da regra fundamental do direito de que a observação da loucura no réu seria razão para repensar a pena, retirar a culpa, repensar o tratamento, na Idade Clássica, a loucura e o mal, sob a forma da insensatez, estão intrincados numa relação próxima que gera agravantes, ou seja, “no mundo do internamento, a loucura não explica nem desculpa coisa alguma; ela entra em cumplicidade com o mal a fim de multiplicá-lo, torná-lo mais insistente e perigoso e atribuir-lhe novas caras”[9].
Pois bem, a um caluniador que seja considerado louco, pode-se dizer que suas calúnias são frutos de delírios que demonstrariam uma suposta verdade essencial do louco: sua ingenuidade, sua inocência. No século XVII, a calúnia se movimento em conjunto com a desordem do espírito, que a complementa, define uma totalidade diferente, constituída pela relação entre o mal e a loucura. A liberdade desenfreada da loucura se exibe descaradamente, por exemplo, no furor, em que o descontrole espiritual se soma à violência para dar corpo à unidade de um mal “entregue a si mesmo”[10].
Justaposição
O internamento de uma mulher no refúgio deixa clara a consideração acerca de sua maldade que, somada à loucura, causa perigos morais à família, à honra. A mulher deveria ser internada
não apenas pelo desregramento de seus costumes mas por sua loucura, que chega frequentemente ao furor e que aparentemente a levará, ou a se desfazer de seu marido, ou a matar-se a si mesma na primeira oportunidade.[11]
O desregramento dos costumes, que relaciona este com o julgamento do abade anteriormente citado, não é o suficiente. Há algo além do descompasso da conduta que, de certa forma, lhe dá um espaço de acontecimento e lhe previne da desordem com um gesto de leitura específico: a loucura é o motor de uma situação concretamente observável que é o furor, momento de verdade em que a loucura suicida, por exemplo, deve ser evitada a partir de medidas de coerção.
Desta forma, “tudo se passa como se a explicação psicológica duplicasse a incriminação moral, quando há muito tempo nos acostumamos a estabelecer entre elas uma relação de subtração”[12]. A consequência seguinte é a loucura da mentira, do fingimento, do falso louco que se faz como desajustado para fugir de uma situação. Maldade e loucura se unem de maneira tão próxima que a maldade da mentira a respeito da loucura já se faz enquanto loucura a respeito da verdade ética.
A loucura sem a intenção de parecer um louco ou a simples intenção sem loucura merecem o mesmo tratamento, talvez pelo fato de obscuramente terem a mesma origem: o mal ou, pelo menos, uma vontade perversa. Por conseguinte, a passagem de uma para a outra será fácil, e admite-se facilmente que alguém se torna louco pelo simples fato de ter desejado ser um louco.[13]
A justaposição entre a loucura real e a imitação da loucura realizam a fantasia sobre o desatino em que a maldade se coloca como uma das quimeras que aflige sua vítima.
Considerações finais
Se, no direito, trata-se de separar rigorosamente o louco verdadeiro daquele que finge demência, pois as penas são específicas segundo suas condições, no internamento não havia tal ímpeto de distinção. A experiência da loucura que se forma através do internamento é estranha à tradição jurídica que forma uma consciência sobre a loucura desde o direito romano e os juristas do século XIII. No espaço de enclausuramento, caso a razão esteja de fato atingida, não está por ausência da vontade, desta forma, por ausência de uma decisão do louco nunca inocente.
O fato de pôr-se em causa a vontade na experiência da loucura tal como é denunciada pelo internamento não está evidentemente explícito nos textos conservados, mas transparece através das motivações e dos modos de internamento.[14]
O relacionamento entre loucura e mal não está mais no campo do todo fantasmagórico da Renascença, um todo oculto do mundo. Na Idade Clássica, há uma loucura e uma maldade justapostas e dependentes de uma decisão individual, de um poder todo do homem, sua escolha, sua vontade.
Referências
[1] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 9ª edição, 2012, p. 136.
[2] Registros retirados da coletânea presente no Département des Manuscrits, na França. FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 9ª edição, 2012, p. 135-136.
[3] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 136. Itálico do autor.
[4] Idem.
[5] Idem.
[6] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 137.
[7] Idem.
[8] Arquivos da Bastilha, RAVAISSON, XI, p. 243 IN FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 9ª edição, 2012, p. 138.
[9] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 138.
[10] Idem.
[11] Notes de René D’Argenson, p. 93. IN FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 9ª edição, 2012, p. 139.
[12] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 139.
[13] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 140.
[14] Idem.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.