Loucura e o sonho – Michel Foucault

Na loucura, um sonho é afirmado como real e conduz ao erro. O erro está elevado à impossibilidade do acerto, não exatamente à falta de correspondência do que se percebe com a realidade. A loucura, a partir do erro e da imersão no sonho, se faz como nada. Mas em seu estatuto de nada, a loucura paradoxalmente se manifesta na ordem da razão e, assim, é identificada em suas positividades particulares.

Da série “Os loucos de Foucault“.

Índice

Introdução

A oposição entre o sonho e a vigília e entre o acerto e o erro atravessam as reflexões de Michel Foucault acerca da verdade da loucura num momento decisivo: compreende-se que o delírio é a linguagem fundamental da loucura, compreende-se que a linguagem da loucura é a da razão a partir de premissas distintas, desta forma, questiona-se acerca da característica do delírio que seria fundamental na caracterização da loucura. Como o delírio se constitui enquanto forma originária da loucura?

A Idade Clássica não formulou respostas diretas para essa questão, talvez até mesmo não tenha percebido a centralidade do delírio nas observações acerca da loucura de tal maneira que precisasse de uma explicação direta. De qualquer forma, o delírio passeia com o sonho e com o erro, elementos vizinhos neste campo adjacente necessário para o exercício da função enunciativa.

O objetivo do presente artigo é expor as relações entre o sonho e a loucura a partir do livro História da Loucura na Idade Clássica.


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O sonho

Apesar da temática onírica permanecer corrente durante a Idade Clássica, com exemplo de André du Laurens, médico francês, que estabelecia a mesma origem para a melancolia e o sonho, inserindo o sobrenatural como elemento causal de tipos específicos de melancolias delirantes, ela ganha proporções maiores, adquirindo o status de uma discussão não só acerca das relações distantes entre loucura e sonho, mas sobre as relações firmadas entre seus fenômenos, em sua própria natureza.

Sonho e loucura surgem então como pertencendo à mesma substância. O mecanismo é um só, e Zachias pode identificar na marcha do sono os movimento que fazem surgir os sonhos, mas que poderiam também, na vigília, suscitar as loucuras.[1]

Esta marcha pode ser dividida em três etapas[2]:

  1. Os primeiros momentos do adormecimento elevam vapores múltiplos, turbulentos e espessos ao cérebro;
  2. Do corpo, tais vapores são elevados para o cérebro, mas como são obscuros, não provocam imagem alguma no órgão;
  3. Sem imagem, o cérebro mantém a agitação gerada pelo turbilhão de vapores que afeta os nervos e os músculos;
  4. Após os primeiros momentos de adormecimento, os vapores tendem a tornar-se mais claros e organizam-se;
  5. Quando os vapores organizam seus movimentos, nascem os sonhos fantásticos;
  6. Após os primeiros momentos de turbulência e processo de organização do movimentos do vapores, o adormecido retoma claramente as imagens que povoam seu dia-a-dia. Na clareza dos vapores antes obscuros, reaparecem as recordações da vigília.

Os furiosos e maníacos enfrentariam as mesmas situações descritas até o terceiro ponto acima apresentado: não são atormentados por constantes alucinações, mas por uma viva agitação sem perspectiva de fim. No quinto ponto, há um estado análogo ao da demência, quando acredita-se em coisas que não existem.

Entre os desenvolvimentos progressivos do sono – com o que eles trazem, em cada estádio, para a qualidade da imaginação – e as formas da loucura, é constante a analogia, porque os mecanismos são comuns: mesmo movimento dos vapores e dos espíritos, mesma libertação das imagens, mesma correspondência entre as qualidades físicas dos fenômenos e os valores psicológicos ou morais dos sentimentos.[3]

A relação entre sonho e loucura não está na positividade de ambas, mas é melhor localizada na analogia da loucura com o complexo do sonho que compreende imagens sonhadas, recordações, predições, fantasmas, o tema do vazio do sono, etc. Elementos que, quando postos em jogo na analogia, representam a criação de barreiras (negatividade) frente ao homem e sua capacidade de perceber a verdade, de estar em vigília.

Enquanto a tradição comparava o delírio do louco à vivacidade das imagens oníricas, a era clássica assimila o delírio apenas ao conjunto indissociável da imagem e da noite do espírito sobre cujo fundo ela se liberta.[4]

Liberta-se da noite do real, na medida em que o sonho é considerado a natureza primeira da loucura. Inverte-se a ideia: o sonho não é mais a forma transitória da loucura, ele passa a ser seu modelo, sua origem, seu núcleo.

O erro

Mas há ainda uma segunda característica complementar, pois não é somente no sonho que a loucura se esgota. Há ainda a modalidade do erro: um sonho não é errado, é ilusório. O erro aparece quando o sonho é desperto, quando transborda do estado de sono para ser vigente na vigília.

O erro é, com o sonho, o outro elemento sempre presente na definição clássica da alienação. Nos séculos XVII e XVIII, o louco não é tanto vítima de uma ilusão, de uma alucinação de seus sentidos, ou de um movimento de seu espírito. Ele não é abusado, ele se engana. Se é fato que, de um lado, o espírito do louco é arrebatado pelo arbitrário onírico das imagens, de outro lado e ao mesmo tempo, ele se encerra em si mesmo no círculo de uma consciência errônea.[5]

Ele se engana, pois é responsável pelos atos que pratica, é possuidor de uma liberdade irrecusável que será fundamento para sua própria recusa ética fundamental. A loucura, assim, perturba a relação do homem com a verdade e, quando assim o faz, assume seu sentido geral e aparece em suas formas particulares. Apesar da definição negativa, em suas formas particulares é possível perceber a positividade segundo cada forma de acesso à verdade. O delírio promove um erro na percepção, a alucinação promove um erro na representação, já a demência promove enfraquecimento das faculdades que dão acesso à verdade, seja essa verdade relacionada aos objetos físicos puramente ou aos objetos morais.

A loucura na Idade Clássica pode ser entendida, assim, a partir do signo da cegueira[6]. Uma noite de quase-sono que obscurece a relação com o real, que transforma em soberanas as imagens produzidas pela loucura.

O discurso fundamental do delírio, em seus poderes constituintes, revela assim aquilo pelo que, apesar das analogias da forma, apesar do rigor de seu sentido, ele não mais é discurso da razão. Ele falava, mas na noite da cegueira; era mais que o texto frouxo e desordenado de um sonho, uma vez que se enganava; contudo, era mais do que uma proposição errônea, uma vez que estava mergulhado nessa obscuridade global que a do sono. O delírio como princípio da loucura é um sistema de proposições falsas na sintaxe geral do sonho.[7]

Um erro fundamental na estrutura do sonho. Um sonho que é afirmado como real e conduz ao erro. Entretanto, o erro enquanto não-verdade não é suficiente para entender esta relação com o sonho: o sonho povoa de imagens a mente louca, mas o erro não é assumido a partir da positividade de sua afirmação. O juízo errado não afirma nada, seu julgamento é aparente: “nada afirmando de verdadeiro ou de real, nada afirma em absoluto, e é considerado, em sua totalidade, o não-ser do erro”[8]. O juízo errado não o é pela sua imposição positiva do erro, mas pela ausência de uma firmação da verdade na medida em que a relação do homem com ela foi destruída. O erro está elevado à impossibilidade do acerto, não exatamente à falta de correspondência do que se percebe com a realidade.

Considerações finais

A loucura, a partir do exibido, se faz como nada. “Unindo visão e a cegueira, a imagem e o juízo, o fantasma e a linguagem, o sono e a vigília, o dia e a noite, a loucura no fundo não é nada, pois liga neles o que têm de negativo”[9]. Mas em seu estatuto de nada, a loucura paradoxalmente se manifesta na ordem da razão.

Ou seja, a loucura que, em sua definição, é nada, aparece como sendo algo na ordem da razão na medida em que exibe uma lógica visível, uma linguagem articulada. Cabe justamente à razão decifrar esta lógica e entender esta linguagem. “Tudo é razão naquilo que a loucura pode dizer sobre si mesma, ela que é negação da razão. Em suma, uma apreensão racional da loucura é sempre possível e necessária, na exata medida em que ela é não-razão[10].

Daí, do desatino ser a experiência de uma loucura que é percebida como não-ser.

Referências

[1] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 9ª edição, 2012, p. 239.

[2] Idem.

[3] Idem.

[4] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 240.

[5] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 240-241.

[6] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 242.

[7] Idem.

[8] Idem.

[9] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 242-243.

Cite este artigo:

SIQUEIRA, Vinicius. Loucura e o sonho – Michel Foucault. Colunas Tortas. Acesso em [DD Mês AAAA]. Disponível em <<https://colunastortas.com.br/loucura-e-o-sonho-michel-foucault/>>.

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