Da série “Os loucos de Foucault“.
Índice
Introdução
E como é que eu poderia negar que estas mãos e este corpo sejam meus? A não ser, talvez, que me compare com aqueles insensatos cujo cérebro é de tal maneira perturbado e ofuscado pelos negros vapores da bílis, que asseguram constantemente que são reis quando paupérrimos.[1]
– Rene Descartes
O desatino, forma como a Idade Clássica percebeu seus loucos, refere-se ao nada. Ao vazio, mas dentro de um espaço preenchido pela linguagem do delírio. Essa, por sua vez, replica a linguagem da razão com pequenas alterações e, de certo modo, mostra concretamente o seu contrário, a não-razão. Desta forma, a loucura não representa uma positividade passível de descrição simples: ela mostra o negativo da razão, o produto mais evitável de uma era baseada no nascimento de uma nova razão clássica em que o cogito é premissa para adquirir o status de sujeito.
Desta forma, a loucura não vitimiza, mas leva ao erro. O erro, por sua vez, ainda é do louco. Sua recusa ética fundamental gera um juízo que não resulta no erro enquanto oposto da verdade, ou seja, que abre caminho para se chegar até a verdade, mas enquanto seu contrário, o não-erro. O juízo do louco destrói perspectivas de se alcançar a verdade e se coloca fora da oposição entre falso e verdadeiro.
Assim, percebe-se descrição da loucura enquanto razão ofuscada, como na epígrafe de René Descartes no início desta introdução. Ofuscada, ou seja, distante da noção mais próximo do presente de uma razão doentia, até mesmo alienada. O objetivo deste artigo é descrever a figura do desatino como surge em História da Loucura na Idade Clássica de Michel Foucault a partir da característica central de sua condição: ser portador de uma razão ofuscada.
Noite em pleno dia
O ofuscamento não indica uma razão propícia à verdade: “é a noite em pleno dia, a obscuridade que reina no próprio centro do que existe de excessivo no brilho da luz. A razão ofuscada abre os olhos para o sol e nada vê, isto é, não vê“[2].
Se o cogito é a condição para ser e, portanto, não pensar faz do louco não-ser, o ser pensante o é justamente por focar seus sentidos na claridade do dia. A visão é o guia para a verdade. Quando o louco nada vê, ele deixa de ver aquilo que é ligado ao ser, que está preso à realidade, mas mesmo nada vendo, ele vê as imagens que, com certa organização, povoam sua mente e são incapazes de criticarem-se a si mesmas, não possibilitam a trajetória da razão, da dúvida.
Dizer que a loucura é ofuscamento é dizer que o louco vê o dia, o mesmo dia que vê o homem de razão (ambos vivem na mesma claridade), mas vendo esse mesmo dia, nada além dele e nada nele, vê-o como vazio, como noite, como nada; as trevas são para ele a maneira de perceber o dia. O que significa que, vendo a noite e o nada da noite, ele não vê nada.[3]
A relação entre o ofuscamento e o dia é mesma daquela firmada entre o desatino e a razão sem a necessidade do uso da metáfora. Não se trata de uma figura que auxilia a entender a real forma de se compreender o desatino: “Estamos no centro da grande cosmologia que anima toda a cultura clássica”[4], pois a riqueza da simbologia interna, da cosmologia presente no pensamento da Renascença desapareceu sem dar à natureza um status universal. Ela não preencheu todos os campos que antes eram entendíveis a partir do nível cosmológico de percepção. Assim, Foucault entende que os clássicos compreendem como relativo à natureza, relativo ao mundo, uma lei abstrata de oposição entre o dia e a noite, num mundo dividido radicalmente entre claridade e trevas.
Lei que exclui toda dialética e toda reconciliação; lei que, por conseguinte, instaura ao mesmo tempo a unidade sem rupturas do conhecimento e a partilha descompromissada da existência trágica; ela reina sobre um mundo sem crepúsculo, que não conhece efusão alguma, nem as preocupações atenuadas do lirismo. Tudo deve ser ou vigília ou sonho, verdade ou noite, luz do ser ou nada da sombra. Ela prescreve uma ordem inevitável, uma partilha serena que torna possível a verdade e a marca definitivamente.[5]
O ciclo entre dia e noite é a forma mais reduzida da natureza, sua lei mais essencial. Ao mesmo tempo, não se tem nem a participação dos astros para dar sentido ao simbolismo interno de uma Renascença, tampouco há um reconhecimento lírico do homem na natureza, de tal maneira que o ciclo das estações conduza o homem em seu ritmo.
Tragédia
A tragédia mostraria, no nível discursivo, como funciona a oposição fundamental entre noite e dia na Renascença:
O dia no teatro de Racine se vê sempre dominado por uma noite que ele traz, por assim dizer, para a luz do dia: noite de Tróia e dos massacres, noite dos desejos de Nero, noite romana de Tito, noite de Atalie. São esses grandes panos de noite, esses recantos de sombra que assombram o dia sem se deixar reduzir, e que só desaparecerão na nova noite da morte.[6]
Numa oposição que coloca ambos os termos, noite e dia, refletidos, a vida e a morte do homem estão capturadas. A noite pressagia o dia que chega, a noite desvenda “o dia mais profundo do ser”[7]. Já o louco não consegue aproveitar a noite para encontrar o ser do dia, pois ele encontra as figuras de sua loucura no dia, encontra seus fantasmas, seus delírios, suas alucinações. As figuras da noite confundem o dia, ofuscam a claridade do sol. A noite, profunda em sua relação com o dia, é reduzida à superficialidade de uma aparência que erra.
É nesta medida que o homem trágico está, mais que qualquer outro, comprometido no ser e é portador de sua verdade, uma vez que, como Fedra, desvenda sob o impiedoso sol todos os segredos da noite, enquanto o louco é inteiramente excluído do ser.[8]
Enquanto o louco atribui ao dia, as ilusões que a noite produz. Enquanto o louco não atravessa a fina camada que transforma a aparência da noite enquanto confusão em entendimento profundo do dia.
Considerações finais
O homem-tragédia, o homem clássico, se constitui em valores, representações, instituições que não permitem a entrada da loucura, na medida em que a loucura se situa justamente no inverso da insistência clássica com o ser.
Enquanto o homem clássico se encontra sempre no trajeto da verdade que passa profundidade da noite e pela verdade da luz, o desatinado se perde pelas imagens que confundem o dia com a noite. O ofuscamento é forte o bastante para aproximar a loucura do signo da indiferença em relação à realidade.
Referências
[1] DESCARTES, René. Meditações. 2º ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005 (Clássicos), p. 31.
[2] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 9ª edição, 2012, p. 243.
[3] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 244.
[4] Idem.
[5] Idem.
[6] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 245.
[7] Idem.
[8] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 245-246.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.