Michel Pêcheux e a análise do discurso francesa

Índice

Sobre Michel Pêcheux

Michel Pêcheux, criador do conceito de condições de produção do discurso.
Michel Pêcheux inseriu a abordagem marxista na análise do discurso.

Michel Pêcheux nasceu em 1938, tornou-se filósofo na Escola Normal Superior em 1963 e teve como dois fortes mentores intelectuais Louis Althusser e Georges Canguilhem. O último lhe apoiou na entrada no laboratório de psicologia social do Centre national de la recherche scientifique (CNRS), em 1966 (MALDIDIER, 2017, p. 17).

Louis Althusser foi decisivo em sua vida acadêmica, levando-o a romper com suas raízes católicas e sartreanas, e a adotar sua interpretação marxista, focando a ideologia como tema central de suas pesquisas.

Posteriormente, Georges Canguilhem despertou seu interesse pela epistemologia e história das ciências. No Laboratoire de la psychologie sociale, realizou uma pesquisa sobre “transmissão de mensagens com conteúdo não usual”.

Em 1969 inicia seus desenvolvimentos acerca da análise do discurso e é considerado seu fundador. Análise do discurso de Michel Pêcheux, de linha francesa, teoriza “como a linguagem é materializada na ideologia e como esta se manifesta na linguagem”, assinala Eni Orlandi (2005, p. 10). O discurso seria o lugar particular onde essa relação é observada com privilégio, por meio do foco nos funcionamentos discursivos e sua ligação com as determinações históricas dos processos de significação.

Envolvido com a revista Cahiers pour l’Analyse, Pêcheux desenvolveu sua abordagem de análise do discurso, influenciada pelo marxismo e pelas ideias de Althusser, destacando o papel discursivo da ideologia. Sua obra principal inclui “Análise Automática do Discurso” (1969) e “Semântica e Discurso: Uma Crítica a Afirmação do Óbvio” (1975).

Nos anos 80, a análise do discurso já era um campo estabelecido, com destaque nos EUA e Reino Unido. No entanto, a contribuição de Pêcheux foi interrompida por seu suicídio em 1983.

A emergência da análie do discurso de linha francesa

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A emergência dos estudos discursivos ocorre em contraposição ao formalismo hermético da linguagem da época, que ignorava a exterioridade na concepção do sentido, mas também se opunha ao estruturalismo, que negava o sujeito e a situação. Assim, “a linguagem não é mais concebida como apenas um sistema de regras formais com os estudos discursivos. A linguagem é pensada em sua prática, atribuindo valor ao trabalho com o simbólico, com a divisão política dos sentidos, visto que o sentido é movente e instável” (BRASIL, 2011, p. 172).

Desta forma, o objeto de estudo passa a ser o discurso, objeto que pede uma observação de seu exterior, que não se limita à sequência de palavras fechadas em si presentes numa frase. Para realizar este tipo de estudo, a análise do discurso de Michel Pêcheux se associa a três regiões do conhecimento: 1) o materialismo histórico, para compreender as formações sociais e a ideologia; 2) a linguística, para compreender mecanismos sintáticos e processos de enunciação; 3) a teoria do discurso, para compreender a determinação histórica dos processos semânticos (BRASIL, 2011). O resultado desta união é um procedimento de análise que permite analisar a textualização do político, permite compreender o que liga o simbólico com as relações de poder (ORLANDI, 2005).

Inicialmente, a questão colocada por Pêcheux foi acerca das práticas em ciências sociais. Segundo o filósofo, estas ciências estariam reproduzindo a ideologia que lhes gestou, sem romper com o estatuto ideológico e, portanto, ascender a uma ciência verdadeira. A não transparência da linguagem foi observada nos objetos e nas práticas das ciências sociais (ORLANDI, 2005).

A não transparência da linguagem é uma conclusão das observações acerca do discurso e do sujeito, da percepção de que o sujeito não é criador de seus significados e de que a linguagem não é fechada em si, detentora da verdade do sentido. “Nessa ótica pêcheuxtiana, o sentido não está claro, óbvio ou transparente, uma vez que é preciso considerar opacidade da materialidade aí presente e já que o sujeito não é estratégico ou origem do dizer” (BRASIL, 2011, p. 173). O sujeito, na análise do discurso pêcheuxtiana, não é origem dos sentidos que move e nem é anulado na análise, o sujeito não é onipotente, mas também não é um lugar estático que uma língua estruturada seria praticada sem margem para a falha.

Para Pêcheux, o sujeito do discurso não se pertence, ele se constitui pelo esquecimento daquilo que o determina: significação do fenômeno da interpelação do indivíduo em sujeito do seu próprio discurso […] O indivíduo é interpelado em sujeito pela identificação com uma formação discursiva dominante, já que o sujeito é sobredeterminado pelos pré-construídos (BRASIL, 2011, p. 173).

O sujeito, assim, é resultado de uma relação entre ideologia e história, sempre dependente do outro, na medida em que não é origem do sentido. O sujeito é, neste sentido estrito, incompleto.

Contentar-nos-emos em observar que o caráter comum das estruturas-funcionamentos designadas, respectivamente, como ideologia e inconsciente é o de dissimular sua própria existência no interior mesmo do seu funcionamento, produzindo um tecido de evidências “subjetivas”, devendo entender-se este último adjetivo não como “que afetam o sujeito”, mas “nas quais se constitui o sujeito” (PÊCHEUX, 1995, p. 152).

No percurso de análise, o sujeito é tratado como posição: posição-sujeito, objeto imaginário que ocupa um espaço específico no processo discursivo (BRASIL, 2011).


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Já o discurso, é “definido por este autor como sendo efeito de sentidos entre locutores, um objeto socio-histórico em que o linguístico está pressuposto” (ORLANDI, 2005, p. 11). Para Pêcheux, o discurso supera a visão da teoria da informação, de que, entre sujeitos, há transmissão de mensagem, por isso, entre dois sujeitos, há um “efeito de sentido” (PÊCHEUX, 1997, p. 82).

A linguagem, nesta visão, é passível de ambiguidade e o discurso é a inserção da língua na história. Sendo assim, a constituição do discurso se dá através da tríade língua, sujeito e história (BRASIL, 2011, p. 173). Relacionando estes três elementos, entende-se que o discurso não é sinônimo de transmissão de informação, como nas teorias comunicacionais, não é um processo linear, sequencial. O discurso é justamente o efeito que acontece entre locutores, ou seja, é o resultado de certa regularidade do dizer, mas que não é harmônica em relação ao seu outro.

A análise do discurso pêcheuxtiana concebe o discurso como tendo suporte de uma formação discursiva, que, para manifestar o discurso, implica aos sujeitos um dever dizer e um poder dizer.

o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa, etc.) a partir de uma posição dada numa conjuntura dada: o ponto essencial aqui é que não se trata apenas da natureza das palavras empregadas, mas também (e sobretudo) de construções nas quais essas palavras se combinam […] as palavras “mudam de sentido” ao passar de uma formação discursiva a outra (PÊCHEUX et al, 1971, s.p.).

A formação discursiva determina o que pode e deve ser dito por um sujeito quando pratica o discurso de seu interior. Mas o sujeito não é somente ligado ao interior de uma formação discursiva: o interdiscurso, aquilo que rodeia as formações discursivas como memórias, aquilo que permite a circulação dos sentidos e relaciona diferentes momentos de falha quando sujeitos interpelados por formações discursivas diferentes falam sobre o mesmo objeto (que é um objeto discursivo diferente por meio do estatuto que adquire em cada formação discursiva).

Assim, as pessoas são associadas à análise do discurso por meio do conceito de sujeito do discurso, interpelado pelas formações discursivas e que produzem sentido por meio da ideologia e do inconsciente. Já o interdiscurso é aquilo que se articula com as formações ideológicas, que são materializadas no discurso pelas formações discursivas.

O discurso, então, é um objeto histórico-ideológico produzido de maneira social através da língua. A língua é a materialidade do discurso, mas as formações discursivas são seu manual (BRASIL, 2011, p. 178).

O dispositivo de análise

A análise do discurso francesa visa construir um dispositivo da interpretação que contrasta o dito com o não dito,

o que o sujeito diz em um lugar com o que é dito em outro lugar, o que é dito de um modo com o que é dito de outro, procurando ouvir, naquilo que o sujeito diz, aquilo que ele não diz mas que constitui igualmente os sentidos de suas palavras (ORLANDI, 2009, p. 62).

O objetivo deste tipo de análise não é encontrar a verdade última de uma frase, o sentido último que ela poderia ter: a ideologia e o insconciente não são apreensíveis como verdades absolutas na materialidade linguística, já que todo enunciado será repleto de pontos de deriva, de possibilidades de assumir outro significado. O que implica no analista, responsável pela escuta, levar em consideração o fato de que, apesar de falarmos a mesma língua, falamos enunciados diferentes e, ao mesmo tempo, implica na consideração do ato da interpretação que ele próprio está implicado.

Ou seja, não há escuta objetiva. Há escuta amparada por um dispositivo teórico que permita entender o efeito de sentido entre os interlocutores.

A análise é um processo que começa pelo próprio estabelecimento do corpus e que se organiza face à natureza do material e à pergunta (ponto de vista) que o organiza. Daí a necessidade de que a teoria intervenha a todo momento para “reger” a relaçao do analista com o seu objeto, com os sentidos, com ele mesmo, com a interpretação (ORLANDI, 2009, p. 64).

Tal análise não é considerada objetiva, mas, por meio dos procedimentos de análie e do dispositivo teórico construído, tende a ser menos subjetiva possível. É impossível retirar algum traço de subjetividade justamente pela figura do analista ser central nas considerações que envolvem o estabelecimento do corpus, a formulação da pergunta de análise e o ato de interpretação.

O ato de interpretação, por sua vez, acontece sob uma distinção entre o objeto dicursivo que será alcançado e a superfície linguística que representa o material bruto coletado. Este material bruto deve ser de-superficializado na análise da materialidade linguística: “o como se diz, o quem diz, em que circunstâncias etc. Isto é, naquilo que e mostra em sua sintaxe e enquanto processo de enunciação (em que o sujeito se marca no que diz)”, afirma Orlandi (2009, p. 65).

De-superficializando o material bruto e observando a emergência das regularidades que estão inseridas no fato de que um sujeito não é dono ou criador de seu enunciado (o esquecimento número 2). Assim, começa-se a compreender o modo de funcionamento do discurso, através da observação entre lugares de fala, relações de força e formaçoes imaginárias presentes no fio do discurso.

De seu lado, o analista encontra, no texto, as pistas dos gestos de interpretação, que se tecem na historicidade. Pelo seu trabalho de análise, pelo dispositivo que constrói, considerando os processos discursivos, ele pode explicitar o modo de constituição dos sujeitos e de produção dos sentidos. Passa da superfície linguística (corpus bruto, textos) para o objeto discursivo e deste para o processo discursivo. Isto resultado, para o analista com seu dispositivo, em mostrar o trabalho da ideologia. Em outras palavras, é trabalhando essas etapa da análise que ele observa os efeitos da língua na ideologia e a materialização desta na língua. Ou, o que, do ponto de vista do analista, é o mesmo: é assim que ele apreende a historicidade do texto (ORLANDI, 2009, p. 68)

Essa passagem da superfície às regularidades possibilitam de fato alcançar a discursividade, alcançar o processo discursivo e formular a formação discursiva que está sendo praticada e a formação ideológica que lhe dá base, fundamento. Ao alcançar o processo discursivo, é possível deslocar o sujeito face aos efeitos linguísticos e ideológicos que o dominam.

Esquematicamente, Eni Orlandi insere este processo numa tabela de correlações da seguinte maneira:

Análise do discurso de linha francesa.

  1. Inicialmente, em contato com o texto, o analista busca sua discursividade, constrói um objeto discursivo e desfaz a ilusão de que o que foi dito só poderia ser dito da maneira como foi. A relação entre palavra e coisa se desnaturaliza. Trata-se do momento de análise em que as paráfrases, sinonímias, relações entre dizer e não-dizer entram em jogo e a configurações iniciais de uma formação discursiva tendem a emergir.
  2. Em seguida, com o objeto discursivo delimitado, será possível observar o jogo de sentidos dos enunciados proferidos pelos seus locutores e compreender a formação ideológica que os rege. Assim, será possível atingir a constituição dos processos discursivos responsáveis pelos efeitos de sentido produzidos no material simbólico coletado e organizado. Será parte do trabalho do analista tomar notas sobre os efeitos metafóricos e do mecanismo parafrástico presente.

As habilidades que se espera de um analista do discurso de linha francesa

Aqui, abro aspas para Eni Orlandi em conferência apresentada na Abralin:

Primeiro de tudo, sem dúvida, a capacidade de ouvir, a habilidade da escuta e da escuta plural. Sempre quando ouço algo, eu ouço um pouco mais do que foi dito ou do que estou lendo – na medida em que a escuta também pode ser aplicada à imagem, ao filme, como um gesto de interpretação que é posto no objeto e que fazem parte da maneira como nos relacionamos com nossos objetos. Ou seja, trata-se de ouvir o que se está ouvindo e conseguir pensar “isso poderia ser dito de outro jeito”. Trata-se também de uma escuta que possibilita pensar o que não está sendo dito naquilo que está sendo dito, é pois uma escuta em que o pesquisador a sofistica a partir da experiência e do conhecimento da teoria e do método da análise do discurso (ORLANDI, 2022).

É necessário uma escuta que seja atenta aos processos de significação dos sujeitos e do mundo:

É preciso compreender como as conjunturas que existem estão presentes nos sentidos que os sujeitos produzem e no modo como esses sujeitos significam aos outros e a eles mesmos. Ouvir-se através de dispositivos teóricos e de interpretação antes de acreditar que compreendeu. Ser capaz de compreender que todos estamos constituídos pela linguagem e pela ideologia e que sempre conta a relação entre o simbólico e o político em qualquer gestão de interpretação. Saber, por fim, manter-se na posição desconfortável entre a linguística, as ciências humanas e sociais e a psicanálise sem aderir a nenhuma delas já que a análise do discurso se constitui neste entremeio. Ela leva em conta a linguística, as ciências humanas e sociais e a psicanálise, ou seja, se utiliza de conceitos como o de inconsciente, história, discute sobre o sujeito e sobre a língua e linguagem em geral, mas sem aderir a nenhuma dessas áreas do conhecimento, pois constitui seu próprio campo (ORLANDI, 2022).

A escuta do analista se situa no entremeio entre a história, a teoria social, a linguística e a psicanálise.

Abaixo, outros artigos introdutórios do Colunas Tortas que fornecem uma visão geral sobre a análise do discurso de Michel Pêcheux:

Livros de Michel Pêcheux

  • Análise Automática do Discurso (1969);
  • Sobre a história das ciências (1969) – com M.Fichant;
  • Semântica e discurso: uma crítica da afirmação do óbvio (1975);
  • A língua inatingível (1981) – com F.Gadet;
  • O discurso: estrutura ou acontecimento (1983).

Análise do discurso: conceitos fundamentais de Michel Pêcheux

Referências

BRASIL, L. L. Michel Pêcheux e a teoria da análise do discurso: desdobramentos importantes para a compreensão de uma tipologia discursiva. Linguagem: Estudos e Pesquisas, Goiânia, v. 15, n. 1, 2011.

MALDIDIER, D. A inquietação do discurso: reler Michel Pêcheux hoje. Campinas: Pontes, 2017.

ORLANDI, Eni. Michel Pêcheux e a análise do discurso. Revista Estudos da Língua(gem), N.1, 2005.

ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise do Discurso: princípios e procedimentos. 8.ed. São Paulo: Pontes, 2009, p. 62.

ORLANDI, Eni. Entrevista: Eni Orlandi. Canal do YouTube da Associação Brasileira de Linguística – Abralin, 2019. Acesso em 25 jul 2022. Disponível em <<https://www.youtube.com/watch?v=BdWBAZPEKoY>>.

PÊCHEUX, Michel. Análise automático do discurso (AAD69) IN GADET, F. HAK, T. (Org.). Por Uma Análise Automática do Discurso: Uma Introdução à Obra de Michel Pêcheux. 3ª Ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1997.

PÊCHEUX, M.; HAROCHE, C.; HENRY, P. A Semântica e o Corte Saussuriano: Língua, Linguagem, Discurso. Linguasagem – Revista Eletrônica de Popularização Científica em Ciências da Linguagem, 1971. Acessado em 2 de abril de 2017. Disponível em <<https://tinyurl.com/y9jbvcvv>>.

PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Traduzido por Eni Pulcinelli Orlandi, Lorenço Chacon J. filho, Manoel Luiz Gonçalves Corrêa e Silvana M. Serrani, 2ª ed., Campinas: Editora da Unicamp, 1995, p. 152.

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