Índice
Introdução
Na teoria marxista-estruturalista de Louis Althusser, um aparelho é um conjunto de lutas, de disputas, de relações e de práticas materiais a respeito de um objeto específico. O aparelho de Estado, por exemplo, só consegue ser utilizado pela classe dominante na medida em que esta toma o poder de Estado e, assim, passa a controlar as técnicas e tecnologias de repressão utilizados pelo Estado.
O desenrolar das lutas em torno do funcionamento e da própria concepção dos aparelhos não anula sua função “maquínica”. O aparelho é uma máquina de reprodução das relações de produção vigentes. Enquanto o Estado é entendido por Althusser como aparelho repressivo de Estado, na medida em que se utiliza principalmente da violência para valer seus desígnios, há instituições que não se enquadram nesta categoria: a religião não funciona majoritariamente através da repressão violenta, mas sim através da reprodução da ideologia religiosa através da reprodução do sistema das diferentes igrejas que, numa situação de conflito suprimido, tende a reproduzir as relações de produção vigentes. Acima de tudo, a reprodução das relações de produção acontece num nível superestrutural, a partir de um certo número de realidades que se apresentam como instituições: igreja, escola, família, direito, política, informação e etc.
O objetivo deste artigo é descrever as características do aparelho ideológico religioso de Estado tomando as igrejas evangélicas (principalmente) e católicas com participação massiva na mídia tradicional como objeto privilegiado de coleta de dados.
Público e privado
Apesar do termo ter a palavra Estado em sua composição, isso não gera consequências na divisão entre público e privado. O fato do aparelho ser estatal não denota sua administração pública. O aparelho é estatal na medida em que tomar o poder de Estado nas sociedades de classe significa possuir os elementos necessários para o exercício eficiente da dominação de classe, na medida em que as instituições de repressão são de responsabilidade estatal (como a polícia, o direito, as prisões e etc).
Sendo assim,
O fato dos AIE serem de domínio privado não implica em seu funcionamento não ter o viés da classe dominante, que detém o poder estatal. A separação de público e privado como a conhecemos é feita dentro do direito burguês, mas o Estado (burguês) escapa ao direito, na medida em que é condição de existência do direito (burguês).[1]
Para compreender o aparelho de Estado aparte da distinção entre público e privado, é necessário compreender, então, que o Estado é por excelência a arma de administração de ordem da classe dominante, seja ela qual for. O Estado é elemento fundamental na reprodução das relações de produção, seja através da participação ativa na sociedade com instituições propriamente públicas, seja com a liberação de empresas privadas no exercício de funções idealmente estatais: por exemplo, o fenômeno das prisões privadas. Importa mais se as práticas reproduzem as relações sociais de produção do que a distinção entre público e privado da instituição específica analisada.
O aparelho é de Estado na medida em que reproduz as relações de produção vigentes e interessantes às classes que detém o poder de Estado, ou seja, as classes dominantes (ou a fração de classe dominante e seu lugar na configuração específica do bloco no poder, enfim).
A materialidade do aparelho
Desta forma, entende-se que mesmo as instituições privadas são categorizadas enquanto aparelhos estatais na medida em que o aparelho não se limita à característica de instituição, mas é a própria institucionalidade que se realiza dentro do aparelho, ou seja, o aparelho é uma realidade distinta dos outros aparelhos, um local de luta, um espaço de disputas em que a classe dominante visa reproduzir as relações de produção vigentes.
Neste espaço de disputas, a reprodução da ideologia se dá através de práticas materiais. Nesta visão específica, é mais importante compreender as práticas materiais de reprodução da ideologia do que o suposto convencimento subjetivo dos membros de tal ou tal grupo religioso acerca da verdade de sua interpretação metafísica do mundo. Torna-se mais importante, assim, analisar a realidade material da reprodução ideológica e não exatamente a opinião subjetiva dos indivíduos religiosos sobre sua religião – a não ser que a produção de opinião sobre si enquanto ser religioso e sobre a própria religião faça parte dos rituais de reprodução ideológica religiosa.
Como item inicial, é possível salientar a participação da imprensa na propagação da fé evangélica:
Seria impensável o sucesso protestante sem a imprensa. Foi graças à tecnologia desenvolvida por Gutenberg (1450) na produção da página impressa que os textos de Lutero e de Calvino ganharam a Europa. O apego dos protestantes à Bíblia, aos livros de confissão de fé e aos catecismos fez desse ramo do Cristianismo a “religião do livro”. Nela, o púlpito e a pregação da palavra, livrocentricamente orientadas, se tornariam a parte mais importante do culto.[2]
A palavra escrita é importante até hoje: em 2016, a Folha Universal, jornal semanal da Igreja Universal do Reino de Deus, tinha tiragem de 1,8 milhões de exemplares, enquanto a Folha de S.Paulo tinha tiragem de somente 300 mil exemplares por dia. Nem mesmo a semanal Veja compete com o alcance evangélico, com 1,1 milhão de exemplares semanais impressos[3]. O Correio do Povo, jornal pertencente ao grupo Record, tem tiragem diária de 153.100 exemplares em dias úteis[4],
Segundo pesquisa da Câmara Brasileira do Livro sobre o ano de 2020[5], os livros religiosos compreenderam 23,30% da venda total, enquanto o faturamento do gênero representou 14,34% do segmento, conforme ilustrado na imagem 1 abaixo. Em comparação com 2000, crescimento de 108,15% em vendas de exemplares e de 296,30% em faturamento[6].
Em 1990, para além da atuação com a palavra escrita, o aparelho religioso também passou a operar a partir da televisão, portanto, do televangelismo. No início da década, a compra da TV Record do Grupo Silvio Santos pela Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) e a entrada da Igreja Católica através do funcionamento da Rede Vida de Televisão foram os motes iniciais. “A partir destes marcos, inúmeras outras insígnias religiosas obtiveram autorizações e puderam passar a explorar os serviços de radiodifusão, podendo levar suas missas, celebrações e ritos aos lares de todos os telespectadores”, explica Bruno Barros[7].
A Record TV e Record News são os canais do Bispo Edir Macedo (que ultrapassam a atuação de uma emissora e se desdobram em portais de notícias, produção audiovisual, distribuição de TV por assinatura, emissoras de rádios e operações com internet), já a Rede Gospel, TV e portal de notícias, é o canal da Igreja Apostólica Renascer. A imagem 2 abaixo do Le Monde Diplomatique contribui para entender a participação dos veículos de mídia de lideranças religiosas:
A Igreja Apostólica Renascer não só é detentora da Rede Gospel:
Foi a Renascer que popularizou o termo gospel no Brasil, no início dos anos 1990, quando Estevam Hernandes e o empresário Antônio Carlos Abbud fundaram a gravadora Gospel Records. A gravadora fechou as portas em 2010, no entanto, o ministério de louvor Renascer Praise, liderado pela Bispa Sônia, ganhou ainda mais notoriedade ao fazer parte do cast da major Universal Music.[8]
Por sua vez, a Rede Católica de Rádio gera transmissão em cadeia para em torno de 430 rádios em todo território nacional. A RCR, comandada pela Unda-BR (União de Radiodifusão Católica do Brasil), foi absorvida pela Signis Brasil (Associação Católica de Comunicação, subsidiária da Signis Bruxelas) “para englobar não apenas as emissoras de rádio, mas todas as mídia católicas”[9].
Por sua vez, a Igreja Adventista do Sétimo Dia conseguiu concessão para sua Rádio Novo Tempo, formada por 18 emissoras em dez estado do Brasil, atingindo 893 cidades e outros países da América do Sul.
Voltando ao pentecostalismo,
na medida em que se expandia pelas camadas pobres, urbanas e operárias – justamente a população mais pobre e menos escolarizada -, incorporou a oralidade, a literalidade e a visualidade nos meios de comunicação de massa. Por exemplo, na televisão estão à venda tanto livros dos teleevangelistas como também seus CDs ou DVDs; um dos livros de Edir Macedo de combate aos cultos afro-brasileiros vendeu mais de três milhões de exemplares.[10]
Esta união entre a mídia impressa (representada concretamente pelos jornais, revistas, livros, panfletos e materiais didáticos produzidos), o audiovisual/mídia televisiva (representado concretamente pelas emissoras de televisão, filmes, séries e produção para internet) e a mídia fonográfica (a partir das gravadoras e emissoras de rádio) produz, na realidade concreta, uma rede de elementos reprodutores da ideologia religiosa. Entretanto, o mais importante para entender o que é o aparelho religioso não é compreender o sentido específico de cada ideologia (caso existam tantas) produzida e reproduzida por cada denominação. Os elementos apresentados acima indicam a própria dinâmica do aparelho em seu nível tecnológico e midiático, indicam a própria existência desta realidade que pode parecer uma simples instituição, que pode parecer um assunto privado, mas que tem relação direta com as relações fundamentais do modo de produção capitalista.
É evidente que a delimitação do aparelho religioso também passa pelo entendimento dos processos de interpelação dos indivíduos em sujeitos religiosos na própria igreja. Tomo o Templo de Salomão, da IURD, como exemplo de programação dentro da própria igreja. Na agenda[11], há a seguinte regularidade:
- Aos domingos: programação às 7h, 9h30 e 18h com leituras da Bíblia, palestras e orações.
- Às segundas: palestra motivacional para o sucesso financeiro às 7h, 10h, 12h, 15h, 18h30 e 22h;
- Às terças: a Corrente dos 70 promete curar problemas de saúde incuráveis às 10h, 15h e 20h;
- Às quartas: encontros para a busca da salvação eterna com a Escola da Fé Inteligente às 10h, 15h e 20h;
- Às quintas: palestras para a vida amorosa às 10h, 15h e 20h;
- Às sextas: sessão do descarrego às 7h, 10h, 12h, 15h e 20h;
- Por fim, aos sábados: o jejum das causas impossíveis é para aqueles que “buscam uma solução para os problemas, aparentemente, impossíveis de serem vencidos”. Às 7h e às 10h.
Perto do Templo de Salomão, ainda no centro histórico da cidade de São Paulo, a Catedral da Sé também conta com programação diária[12]:
- Horário das missas: de segunda e sexta, às 9h, às 12h e às 18h; terça, quarta e quinta, às 12h e às 18h; sábado às 12h; domingo às 9h, 11h e 17h;
- Além disso, o horário de funcionamento é importante, já que a oração silenciosa dentro da igreja faz parte dos rituais de religiosidade católicos. De segunda a sexta, das 8h às 19h; sábado, das 8h às 17h; domingo, das 8h às 13h.
Todos os dias há oportunidades diferentes à interpelação religiosa acontecer e renovar os votos de fidelidade do sujeito com sua religião específica, mas, acima de tudo, a oportunidade sempre aproveitada é a de reafirmar a relevância real da instituição religiosa e de suas possíveis ideologias. O aparelho religioso não cria uma realidade inexistente, que seria a realidade da religião, mas é uma expressão desta realidade incontornável, da cadeia de relações que passam pelas tecnologias, pela produção de informação, pela produção de conteúdo não informativo e informativo por escrito, em audiovisual ou em emissoras de rádio pelas diferentes lideranças religiosas, assim como pelos rituais de assujeitamento descritos através da programação de duas grandes igrejas do Brasil, o Templo de Salomão, neopentecostal, e a Igreja da Sé, católica. Além disso, evidentemente, o aparelho familiar deveria ser observado em suas relações com o aparelho religioso, assim como o aparelho judiciário, por exemplo.
Este aparelho religioso também se expande para meios de comunicação ou empresas de produção que não necessariamente são propriedade de lideranças religiosas: a participação de artistas cristãos num segmento próprio dentro da gravadora Universal Music (a partir do selo Universal Music Christian Group) ou Som Livre (com o selo Você Adora), a participação regular de líderes religiosos em programas de televisão não religiosos em rede nacional, assim como as operações de Comunidades Terapêuticas evangélicas e católicas na reabilitação de dependentes em drogas, que receberam quase 70% dos recursos enviados pelo Ministério da Cidadania às entidades do tipo[13].
Considerações finais
Não foi objetivo deste artigo detalhar as diferentes faces do aparelho religioso e seu funcionamento através das diferentes frentes de sua atuação. Somente exibir a noção de aparelho ideológico de Estado em Louis Althusser e sua complexidade na realidade concreta tomando como exemplo a participação das igrejas evangélicas (principalmente) e católicas com participação massiva na mídia tradicional foi o intento do presente texto.
A partir dos dados exibidos acima, é possível compreender que o aparelho ideológico religioso não se resume à instituição religiosa, mas compreende uma realidade de relações que reproduzem as relações de produção da formação social vigente a partir da(s) ideologia(s) religiosa(s) existentes. Ou seja, apesar da influência política evidente em situações pontuais[14], mesmo quando parece neutro, o aparelho religioso reproduz relações sociais de produção que são constituídas justamente por relações políticas, econômicas, culturais, etc.
Como qualquer aparelho e principalmente os aparelhos ideológicos, há luta e há possibilidade de transformação sendo que, talvez, a teologia da libertação possa ser localizada num polo de contracorrente nas lutas presentes no aparelho religioso.
Referências
[1] SIQUEIRA, Vinicius. Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado – Louis Althusser: uma resenha. Acesso em 15 abr 2022. Disponível em <<https://bit.ly/3uPIynD>>.
[2] CAMPOS, Leonildo Silveira. Evangélicos e Mídia no Brasil – Uma História de Acertos e Desacertos. Revista de Estudos da Religião, setembro de 2008, p. 7-8.
[3] BANDEIRA, Olívia. Igrejas cristãs no topo da audiência. Le Monde Diplomatique, 2018. Acesso em 15 abr 2022. Disponível em <<https://bit.ly/3rvLN1x>>.
[5] Produção e vendas do setor editorial brasileiro – ano-base: 2020. Câmara Brasileira do Livro, maio de 2021. Acesso em 15 abr 2022. Disponível em <<https://bit.ly/3uMxGa6>>.
[6] ENDO, Whaner. A práxis do mercado editorial evangélico. Similaridades e diferenças entre a produção e distribuição do livro evangélico e do livro secular no Brasil. Universidade Metodista de São Paulo – Dissertação de mestrado, São Bernardo do Campo, 2008, p. 45-46.
[7] BARROS, Bruno M. C. As igrejas e os meios de comunicação: uma análise jurídica da convergência entre mídia e fé. XI Seminário internacional de demandas sociais e políticas públicas na sociedade contemporânea. VII Mostra de trabalhos jurídicos científicos, 2014.
[8] BANDEIRA, Olívia. Igrejas cristãs no topo da audiência…
[9] Ibidem.
[10] CAMPOS, Leonildo Silveira. Evangélicos e Mídia no Brasil – Uma História de Acertos e Desacertos…
[11] Agenda da Universal. Acesso em 16 abr 2022. Disponível em <<https://www.universal.org/siteagenda/>>.
[12] Agenda da Catedral da Sé, em São Paulo. Acesso em 16 abr 2022. Disponível em <<https://bit.ly/3xPVFXZ>>.
[13] SIQUEIRA, Vinicius. Saúde Mental: apanhado das ações do Governo Bolsonaro. Colunas Tortas, 2022. Acesso em 16 abr 2022. Disponível em <<https://bit.ly/3rwaWsE>>.
[14] ZANINI, Fábio. Igreja Universal usa jornal para fazer campanha contra Lula e o PT. Folha de S.Paulo, 2022. Acesso em 16 abr 2022. Disponível em <<https://bit.ly/3rA6zwZ>>.
Cite este artigo:
SIQUEIRA, Vinicius. O aparelho ideológico religioso – Louis Althusser. Colunas Tortas. Acesso em [DD Mês AAAA]. Disponível em <<https://colunastortas.com.br/o-aparelho-ideologico-religioso-louis-althusser/>>.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.
Maravilhoso o texto! Obrigada!
Obrigado, Lúcia!