O interdiscurso em Jean-Jacques Courtine – DROPS #56

COURTINE, Jean-Jacques. Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado aos cristãos. São Paulo: EdUFSCAR, 2009, p. 99-101.

O nível do enunciado: descrição do interdiscurso de uma FD

a) Interdiscurso e saber. Diremos que é no interdiscurso de uma FD, como articulação contraditória de FD e de formações ideológicas, que se constitui o domínio do saber próprio a esta FD. A contradição é exclusiva, constitutiva das FD: os objetos ou elementos do saber aí se formam.


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O domínio de saber de uma FD funciona como um princípio de aceitabilidade discursiva para um conjunto de formulações (determina “o que pode e deve ser dito”), assim como um princípio de exclusão (determina “o que não pode/não deve ser dito”).

Ele realiza, assim, o fechamento de uma FD, delimitando seu interior (o conjunto dos elementos do saber) de seu exterior (o conjunto dos elementos que não pertencem ao saber da FD); esse fechamento, entretanto, é fundamentalmente instável: não consiste num limite traçado, de uma vez por todas, mas se inscreve entre diversas FD como uma fronteira que se desloca, em razão dos jogos da luta ideológica, nas transformações da conjuntura histórica de uma dada formação social.

Para nós, o interdiscurso de uma FD deve ser pensado como um processo de reconfiguração incessante no qual o saber de uma FD é levado, em razão das posições ideológicas que esta FD representa em uma conjuntura determinada, a incorporar elementos pré-construídos produzidos no exterior de si mesmo, a depois produzir sua redefinição ou volta; a igualmente suscitar a lembrança de seus próprios elementos, a organizar sua repetição, mas também, eventualmente, a provocar seu apagamento, esquecimento  ou mesmo sua denegação. O interdiscurso de uma FD, como instância de formação/repetição/transformação dos elementos do saber dessa FD, pode ser apreendido como o que regula o deslocamento de suas fronteiras.

b) O enunciado e a reformulação. Chamamos enunciados (grafado [E]) os elementos do saber próprio a uma FD. Conceberemos o enunciado como uma forma ou um esquema geral que governa a repetibilidade no seio de uma rede de formulações (grafado R[e]).

Uma rede de formulações consiste num conjunto estratificado ou desnivelado de formulação, que constituem as formulações possíveis de [E]. O que chamamos “estratificação” ou “desnivelamento” das formulações remete à dimensão vertical (ou interdiscursiva) de um [E] como R[e].

[E] é, assim, a forma geral, “indefinidamente repetível”, a partir da qual se pode descrever a constituição em uma rede de um conjunto de formulações dispersas e desniveladas no seio da FD: pode-se assim percorrer R[e] a partir de [E] como um trajeto das reformulações possíveis de [E]. Inversamente, é a partir da reunião de um conjunto de formulações em rede que se poderá tentar levantar os elementos do saber próprio a uma FD, nas condições descritas anteriormente na alínea a). O conjunto das R[e] no interior de uma FD constitui o processo discursivo inerente a esta FD.

c) A referência e o sujeito universal. É em tais redes de formulações que se estabiliza a referência dos elementos do saber: os objetos do discurso se formam nelas como pré-construídos, os [E] nelas se articulam.

É igualmente nesse nível de constituição do [E] como elemento de saber, sob a dominação do interdiscurso, que a instância do Sujeito universal (ou sujeito do saber próprio a uma FD, notada SU) deve ser situada, reportando-se ao lugar de onde se pode enunciar: “todos saber/veem/dizem/compreendem que…” para todo sujeito enunciador que venha a enunciar uma formulação a partir de um lugar inscrito na FD. O saber próprio a uma FD é assim formado do conjunto das asserções remetendo ao SU e marca bem que o enunciável aí se constitui como exterior ao sujeito que enuncia.

 – Jean-Jacques Courtine.

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