O que é necropolítica – Achille Mbembe

A morte é fabricada na necropolítica num sentido parecido que a vida é fabricada na biopolítica. A morte, na biopolítica, é um subproduto. Na necropolítica, não há subproduto: a morte é o grande ponto.

Da série “Necropolítica“.

Índice

O que é necropolítica

A noção de necropolítica é atravessada por deslocamentos em relação ao entendimento contemporâneo sobre a política, sobre a soberania e sobre o funcionamento do Estado. A partir de uma visão que se instala nos territórios colonizados, Achille Mbembe, filósofo camaronês, desenvolve o entendimento sobre a necropolítica como aquilo que ultrapassa os limites da biopolítica foucaultiana.

O objetivo deste artigo é, de maneira rápida, expor a noção de necropolítica enquanto uma estratégia de poder que extravasa os limites dos Estados-nação modernos e se instala justamente nos territórios em que o direito, a dignidade e a possibilidade de um fazer viver são raros.


Receba tudo em seu e-mail!

Assine o Colunas Tortas e receba nossas atualizações e nossa newsletter semanal!


Inicialmente, Achille Mbembe compreende a soberania como uma relação previsível de transgressão. O Estado soberano é aquele autorizado ao ato de transgressão da morte:

A política é, portanto, a morte que vive uma vida humana. Essa também é a definição de conhecimento absoluto e soberania: arriscar a totalidade de uma vida […] a política só pode ser traçada como uma transgressão em espiral, como aquela diferença que desorienta a própria ideia do limite. Mais especificamente, a política é a diferença colocada em jogo pela violação de um tabu.[1]

A perspectiva da política enquanto possibilidade de transgressão atualiza o entendimento da própria forma política moderna. Desloca o seu objetivo: não se trata mais de compreender a política enquanto possibilidade de resolução de conflitos de maneira racional, mas de observar a realidade concreta e compreender que a política, com foco na soberania, envolve a possibilidade de matar legitimamente.

A morte legítima perpetrada pelo biopoder, que é relacionada ao racismo de Estado e à possibilidade de, na separação entre povo e população, eliminar partes do povo que não se adequam às normas, não é mais viável para compreender o papel da morte nos territórios afligidos pela necropolítica. Trata-se de outro entendimento: o biopoder faz viver e deixa morrer, a necropolítica faz viver e faz morrer. Este fazer morrer necropolítico é impessoal, é mecanizado:

Em um contexto em que a decapitação é vista como menos humilhante do que o enforcamento, inovações nas tecnologias de assassinato visam não só “civilizar” os caminhos da morte, mas também eliminar um grande número de vítimas em espaço relativamente curto de tempo.[2]

E isso só pode acontecer numa zona territorial em que opera o Estado de exceção, pois, segundo Giorgio Agamben:

O estado de exceção separa, pois, a norma de sua aplicação para tornar possível a aplicação. Introduz no direito uma zona de anomia para tornar possível a normatização efetiva do real.[3]

É no Estado de exceção em que é possível aplicar normas que possibilitam a transgressão estatal. O Estado soberano se faz presente justamente sobre a vida dos nativos dos territórios colonizados. Segundo Achille Mbembe:

Por todas essas razões, o direito soberano de matar não está sujeito a qualquer regra nas colônias. Lá, o soberano pode matar em qualquer momento ou de qualquer maneira. A guerra colonial não está sujeita a normas legais e institucionais. Não é uma atividade codificada legalmente.[4]

Isso configura uma estratégia de poder, que segundo Michel Foucault pode ser definida como o:

conjunto dos meios operados para fazer funcionar ou para manter um dispositivo de poder. Podemos também falar de estratégia própria às relações de poder na medida em que estas constituem modos de ação sobre a ação possível, eventual, suposta dos outros. Podemos então decifrar em termos de “estratégias” os mecanismos utilizados nas relações de poder.[5]

Desta forma, a comparação da necropolítica, como uma política de morte, com a biopolítica, uma política de vida, compreende justamente uma genealogia da morte, um entendimento de que as estratégias de poder se modificam e que a morte, no neoliberalismo sobre as colônias, é aplicada de maneira asséptica:

Quando Mbembe se pergunta se a noção de biopoder é suficiente para contabilizar as formas contemporâneas em que o político, por meio da guerra, da resistência ou da luta contra o terror, faz do assassinato do inimigo seu objetivo primeiro e absoluto, responde negativamente. A noção de biopolítica dá conta de compreender a instrumentalização generalizada da existência humana e a destruição material dos corpos humanos e populações? De compreender os campos de morte instaurados em todos os cantos do planeta como nomos do espaço político? Certamente, não. Ao afirmar sua insuficiência para compreender essas questões, isso não significa dizer que a necropolítica substitua a biopolítica, pois elas podem operar juntas, ou uma suceder a outra, em diversas situações. Sem a polidez de Foucault, ao tratar do racismo e pensando desde outro território, Mbembe apresentará a necropolítica, no entanto, como sinônimo de política ou como o trabalho da morte – brutalismo.[6]

Necropolítica como sinônimo de uma política construída na modernidade através da soberania praticada enquanto ato de transgressão, enquanto a maior transgressão de todas: a da morte. Ou seja, política enquanto aquilo que se faz, aquilo que tem uma forma, mas não necessariamente se tem uma origem que funcionaria como referência para um retorno seguro. A necropolítica, assim, acontece quando o fazer viver e deixar morrer da biopolítica se unem a um imperativo da morte, um fazer morrer aliado não ao racismo de Estado, mas ao racismo enquanto elemento concreto de exclusão da própria possibilidade de viver.

raça, presente na argumentação de Foucault, como um dos elementos que, desde o século XVIII é usado para racionalizar/criar os fenômenos biopolíticos, já está na fala de Mbembe como dispositivo regulador do Estado, há tempos, oriunda de outras referências filosóficas e históricas. O racismo, propriamente dito, tem lugar proeminente na necropolítica; certamente não por influência de Foucault. Mbembe define a necropolítica como um projeto político, sem dúvida, de subjugação que se sustenta a partir da imaginação da desumanidade de povos ou grupos. Como enfatiza Foucault, o racismo é uma tecnologia (das mais eficientes) que permite o exercício de um dado tipo de poder, do biopoder, ou, como dirá Mbembe, mais tarde, do necropoder. “O racismo regula a distribuição da morte e torna possível as funções assassinas do Estado.” (MBEMBE, Necropolítica, 2018, p. 18). Arendt, Foucault, Mbembe, em coro, denunciam que o racismo é meio antinatural da morte e é, ao mesmo tempo, o que faz com que ela seja aceitável.[7]

O racismo, assim, na necropolítica, distribui as mortes. Em vez de um subproduto da biopolítica, uma necessidade escusa, operada como necessidade moralmente condenável e por isso mesmo justificada por diferentes projetos (como o nazismo, como a guerra às drogas, etc), o racismo passa a operar papel positivo, prescritivo. Na necropolítica, a morte é prescrita. Bontempo entende que:

O poder político hoje cuida não só de medidas sobre como a vida deverá ser gerida, mas também se encarrega de fazer a gestão sobre como morrer e sobre quem deve morrer. Achille Mbembe sugere a noção de necropolítica e necropoder para compreendermos como as armas de fogo são usadas para destruir um maior número possível de pessoas e criar o que ele chamou de “mundos de morte”. O que há na realidade são grandes populações submetidas a “condições de vida que lhes conferem o estatuto de ‘mortos-vivos’”.[8]

O salto está na positividade da estratégia: a morte é fabricada na necropolítica num sentido parecido que a vida é fabricada na biopolítica. A morte, na biopolítica, é um subproduto. Na necropolítica, não há subproduto: a morte é o grande ponto.

O sujeito que é alvo da morte é fabricado, é constituído pelo poder enquanto corpo descartável:

Nessas formas mais ou menos movediças e segmentadas de administração do terror, a soberania consiste no poder de fabricar toda uma série de pessoas que, por definição, vivem no limite da vida, ou no limite externo da vida – pessoas para quem viver é um constante acerto de contas com a morte, em condições em que a própria morte tende cada vez mais a se tornar algo espectral, tanto em termos de como é sofrida quanto pela forma como é infligida.[9]

É característica da necropolítica não só matar, mas cuidar para que os corpos mortos sejam fabricados, para que a população que mata, não sinta remorso. O corpo “morto-vivo” do alvo da necropolítica é um corpo fabricado pelo poder para ser alvo, boneco de pano, saco de ossos apto à morte. Ao mesmo tempo, o corpo que mata é fabricado para ser o soberano representado por um indivíduo, apto a matar.

Definição de necropolítica

Em síntese, é possível dizer que a necropolítica é uma forma de poder de morte que reconfigura as relações entre sacrifício, resistência e terror. De tal maneira que a noção de biopoder se mostra insuficiente para dar conta das estratégia de poder que são praticadas principalmente em territórios ainda marcados pela colonialidade.

A necropolítica nasce quando o poder de morte é prescritivo, ou seja, quando, na contemporaneidade, “armas de fogo são implantandas no interesse da destruição máxima de pessoas e da criação de ‘mundos de morte'”[9].

Nestes mundos de morte, territórios coloniais em que a morte é um destino que as pessoas não podem se distanciar pois não são submetidos a uma biopolítica de fazer viver, os sujeitos produzidos à morte são concebidos como “mortos-vivos”, pessoas que vivem no limite externo da vida[10].

Neste limite externo da vida, o sujeito encosta na vida, mas abraça a morte, pois vive numa condição concreta de abusos, sabotagens e dominação colonial, com suspensão dos direitos. O sujeito fabricado à morte é uma forma de homo sacer, de sujeito que sua morte não implica em homicídio.

Necropolítica no Brasil

No Brasil, a necropolítica é resultado direto da escravatura, que permanece como memória social e tem efeitos econômicos, políticos e culturais em nosso dia a dia. A contemporaneidade brasileira ainda é permeada do período de escravização inclusive através do racismo estrutural, institucional e individual. O sociólogo Eduardo Mei salienta que:

Quando a escravidão foi abolida (1888), os antigos escravos foram abandonados à própria sorte e sobreviveram resistindo numa sociedade racista e de exclusão. Quanto aos povos indígenas, aqueles que sobreviveram ao genocídio foi em razão da dimensão continental do país e pelo fato que, ao contrário dos Estados Unidos, o Brasil mantém até hoje, graças à imensa floresta amazônica, um imenso território relativamente pouco devastado (lembremos que Bolsonaro exalta o genocídio dos indígenas americanos perpetrado pela cavalaria dos Estados Unidos).[11]

Usando os povos indígenas como exemplo, de 2019 até 2022, 795 indígenas foram assassinados. É interessante percebe como que, neste período, houve um retorno de crescimento no assassinato de indígenas a cada ano, sendo freado em 2022, conforme mostrado no gráfico abaixo retirado do Atlas da Violência de 2024:

Fonte: Atlás da Violência de 2024. Necropolítica contra indígenas.
Fonte: Atlas da Violência de 2024.

É importante salientar que, apesar da alta de homicídios, a necropolítica sobre os indígenas não é limitada ao governo Bolsonaro, conforme indicado pelos dados dos anos anteriores. Entre 2009 e 2019 houve aumento de 21,9% de mortes de indígenas, segundo o Atlas da Violência de 2021.

Abordando a população negra, historicamente é aquela que mais sofre com assassinatos e é a mais vulnerável a ataques contra a vida, conforme observado no gráfico abaixo, também do Atlas da Violência de 2024:

Fonte: Atlás da Violência de 2024. Necropolítica no Brasil.
Fonte: Atlas da Violência de 2024.

O risco de morte é quase o triplo a cada ano. Dos dados de 2020, 78,9% das mortes em operações policiais eram de pessoas negras, razão de 2,8 vezes maior que a morte de brancos nas mesmas circunstâncias[12].

Necropolítica e a pandemia do coronavírus

Na pandemia de COVID-19, a necropolítica pôde ser vista nos dados de mortes de pessoas pobres e trabalhadores. Eles foram incitados a saírem às ruas seja por falta de assistência estatal ou pela interpelação que sofreram por ideologias suicídias como o bolsonarismo.

Entretanto, para além disso, há outras duas categorias que foram incitadas à morte, dois tipos de corpos fabricados para morrer[13]:

  • Profissionais da Saúde, que foram colocados na linha de frente do combate à pandemia mesmo sem formação completa, mesmo sem estágio completo, com preparação feita por aulas online e sem equipamentos adequados para o trabalho cotidiano seguro;
  • Migrantes, que foram proibidos de entrar no Brasil em 2020, mas, principalmente, venezuelanos que tiveram menos possibilidade que o restante dos migrantes de outros países que fazem fronteira com o Brasil.

Os profissionais de Saúde foram governados a partir de uma política de morte em que seu sacrifício era, ao mesmo tempo, sua glorificação. Uma morte programada que era escamoteada por meio do discurso dos “heróis da Saúde”. Heróis que só adquirem tal status através do combate incessante ao vírus e, consequentemente, da convivência com a morte constante.

No caso dos migrantes venezuelanos, a pandemia aconteceu em meio a uma crise humanitária no país e alto fluxo migratório ao Brasil. Com o início da pandemia e fechamento da fronteira, as pessoas venezuelanas foram interditadas num território limite, entre fronteiras, distantes da assistência do Estado venezuelano e, ao mesmo tempo, rejeitadas pelo Estado brasileiro.


Receba tudo em seu e-mail!

Assine o Colunas Tortas e receba nossas atualizações e nossa newsletter semanal!


Referências

[1] MBEMBE, Achille. Necropolítica. Arte & Ensaios – revista do ppgav/eba/ufrj, n. 32, dezembro 2016, p.124-126.

[2] MBEMBE, Achille. Necropolítica… p.129.

[3] AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução: Iraci D. Poleti. 2ª ed. Boitempo Editorial: São Paulo, 2007, p.58.

[4] MBEMBE, Achille. Necropolítica… p.134.

[5] FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder IN P. Rabinow & H. Dreyfus, Michel Foucault – uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica (pp. 231-249). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 248.

[6] PIZA, Suze. Sequestro e resgate do conceito de necropolítica: convite para leitura de um texto. Trans/Form/Ação [online]. 2022, v. 45, n. spe [Acessado 17 Novembro 2022] , pp. 129-148. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/0101-3173.2022.v45esp.08.p129>.

[7] PIZA, Suze. Sequestro e resgate do conceito de necropolítica: convite para leitura de um texto…

[8] BONTEMPO, V. L. Achille Mbembe: a noção de necropolítica. Sapere aude –Belo Horizonte, v. 11 –n. 22, p. 558-572, Jul./Dez. 2020 –ISSN: 2177-6342.

[9] MBEMBE, Achille. Necropolítica… p.129.

[10] MBEMBE, Achille. Necropolítica… p.129.

[11] A necropolítica brasileira e sua origem na guerra da colonização. Entrevista com Eduardo Mei. Fundação Perseu Abramo, 2020.

[12] Anuário do Fórum Brasileira de Segurança Pública, 2022. Acesso em 02 de julho de 2024. Disponível em <<https://forumseguranca.org.br/publicacoes/anuario-brasileiro-de-seguranca-publica/>>.

[13] LIMA, V. S. Enunciados necropolíticos do Ministério da Saúde brasileiro sobre a pandemia de covid-19. Dissertação (Mestrado em Ciências) – Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Paulo. São Paulo, p. 133. 2023.

Deixe sua provocação! Comente aqui!