A arte de governar: lidar com o acontecimento no biopoder – Michel Foucault

Uma das responsabilidades do capitalismo mercantilista nascente é lidar com o acontecimento com alguma segurança: é necessário resolver problemas que flagelaram a Europa durante séculos, sendo a escassez alimentar um deles. Para isso, os dispositivos de segurança são construídos, criados, elaborados de tal maneira que sua ação supere as limitações juridico-disciplinares (portanto, não deve se comportar como lei para intermediar) e se mantenha numa zona de liberdade, de liberalização. Tomando ainda a escassez alimentar como exemplo, o ponto central da elaboração biopolítica não é a resolução completa do problema para que a fome se extinga, mas sim a dispersão da fome, a dissociação da fome como flagelo social, transformada em problema de um indivíduo ou outro, mas não da população.

Da série “Biopoder“.

Índice

Introdução

A segunda característica dos dispositivos de segurança no biopoder é relacionada à maneira como eles elaboram saídas para problemas possíveis através da construção de diferentes formas de organização social, diferentes mapas de relações de causa e efeito no meio. O controle do meio, seu planejamento e sua modificação, são feitas através de olhares específicos, olhares relacionais que, em conjunto da promoção de liberdade (com fins econômicos), rearranjam relações sociais que favorecem a ascensão do capitalismo moderno.

Esta é a relação do governo com o acontecimento: relação feita com intentos de controle de problemas reais, tentativas de conter tragédias sociais e transformá-las em males locais, olhares específicos para as variáveis que tornam um acontecimento passível de emergência (o comércio de cereais no século XVIII é favorecido com a criação de leis para fazer intermédio do comércio exterior? A distribuição interna é alterada positivamente com a liberalização do comércio?), em suma, um conjunto de técnicas de observação, elaboração teórica, planejamento e aplicação com fins de favorecer a administração social capitalista de forma que o guia para cada passo descrito anteriormente seja a ampliação da liberdade de circulação através da regulamentação própria do biopoder, não mais da legalidade dos aparelhos jurídicos.

Para exemplificar, Michel Foucault analisa o problema da escassez alimentar no século XVIII em França.


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A escassez alimentar e os fisiocratas

Longe de ser um problema sinônimo à fome, a escassez alimentar era tratada como uma questão de raridade de gêneros alimentícios disponíveis que faz com que os preços subam e que os comerciantes segurem seus estoques para aguardar o pico dessa subida. Este movimento acarreta na escassez, quando necessidades mais básicas da população deixam de ser satisfeitas.

“A arte de governar e os dispositivos de segurança”. Veja aqui:

Quando este tipo de necessidade não é atendida, a probabilidade de revoltas urbanas aumenta (e este é o objetivo principal da aplicação de técnicas de governamentalidade na resolução do problema da escassez alimentar). O problema da escassez alimentar é, para a população, um flagelo; para o governo, uma crise política em gestação.

Todo um sistema jurídico e disciplinar é construído nos séculos XVII e XVIII para evitar a incidência da escassez:

O objetivo é, obviamente, que os cereais sejam vendidos ao preço mais baixo possível, que os camponeses tenham por conseguinte o menor lucro possível e que a gente das cidades possa, assim, se alimentar ao preço mais baixo possível, o que vai ter por consequência que os salários pagos a ela serão também os mais baixos possíveis. Essa regulação por baixo do preço de venda dos cereais, do lucro do camponês, do custo de compra para as pessoas, do salário, vocês sabem que é evidentemente o grande princípio político que foi desenvolvido, organizado, sistematizado durante todo o período que podemos chamar de mercantilista […] Esse sistema é essencialmente um sistema antiescassez alimentar.[1]

O pensamento global, o planejamento geral, a partir de ações com efeitos locais caracteriza a maneira como os dispositivos de segurança rearranjam relações para conformar a situação geral segundo as expectativas de governo. “Sistema antiescassez alimentar, sistema essencialmente centrado num acontecimento eventual, um acontecimento que poderia se produzir e que se procura impedir que se produza antes que ele se inscreva na realidade”[2], dirá Foucaut. No entanto, ainda se trata de um sistema com pés fincados na administração disciplinar dos corpos, dos espaços e do tempo.

É evidente que forçar a baixa dos preços dos cereais culmina em sua situação de carestia para os camponeses nos momentos de abundância. A produção sobe ao máximo, consequentemente, os preços tendem ao valor mais baixo, tão baixo que não cobre o investimento para a produção e colheita. Constrangidos a produzir menos, na medida em que o lucro não cobre satisfatoriamente nem com regularidade o valor investido, a produção passa a não ter excedente e, num variação climática qualquer que freie a colheita, a escassez volta com força total a ser um flagelo. O mesmo problema se repete como um ciclo interminável.

No entanto, antes mesmo de observar a eficiência destas tomadas políticas de decisão, é necessário observar que a elaboração do plano geral para lidar com a escassez sofreu mudanças profundas nestes séculos:

O que aconteceu então foi, na realidade, talvez através e graças ao intermédio, ao apoio dos fisiocratas e da sua teoria, foi na verdade toda uma mudança, ou melhor, uma fase de uma grande mudança nas técnicas de governo e um dos elementos dessa instauração do que chamarei de dispositivos de segurança.[3]

A livre circulação foi colocada em pauta pelos fisiocratas e teóricos da economia, de tal maneira que o dispositivo de segurança se fez como elemento ligado à realidade, que não tenta evitar situações possíveis, mas lidar com as situações presentes segundo os dados que se tenha para construir qualquer forma de administração.

O que Abeille e os fisiocratas e teóricos da economia no século XVIII procuraram obter foi um dispositivo que, conectando-se à própria realidade dessas oscilações, vai atuar de tal modo que, por uma série de conexões com outros elementos da realidade, esse fenômeno, sem de certo modo nada a perder da sua realidade, sem ser impedido, se encontre pouco a pouco compensado, freado, finalmente limitado e, no último grau, anulado.[4]

Ou seja, buscando o suporte da realidade, o problema possível a ser resolvido pode ser elaborado nos seguintes questionamentos: como é possível diminuir aos índices normais as taxas de escassez presentes no território nacional? Como os índices de distribuição alimentar poderão ser normalizados para todas as regiões do Estado-nação? Quais tipos de adequações não-jurídicas e não-disciplinares deverão ser feitas para gerar efeitos globais de adequação?

Em outras palavras, é um trabalho no próprio elemento dessa realidade que é a oscilação abundância/escassez, carestia/preço baio, é apoiando-se nessa realidade, e não tentando impedir previamente, que um dispositivo vai ser instalado, um dispositivo que é precisamente, a meu ver, um dispositivo de segurança e não mais um sistema jurídico-disciplinar.[5]

Desta forma, lidar com a realidade como ela se apresenta. A solução da liberdade econômica, solução fisiocrata, não nega a existência da fome (e sua fatalidade), só não aceita a possibilidade da escassez como flagelo – que é fator na emergência de revoltas urbanas. Este é o problema a ser resolvido.

Considerações finais

Se o flagelo social deve ser evitado, então, segundo os planejamentos governamentais, segundo as ações dos dispositivos de segurança modernos:

Vai-se deixar que se crie e se desenvolva esse fenômeno de escassez-carestia neste ou naquele mercado, em toda uma série de mercados, e é isso, essa realidade mesma à qual se deu a liberdade de se desenvolver, é esse fenômeno que vai acarretar justamente sua autofrenagem e sua auto-regulação. De modo que já não haverá escassez alimentar em geral, desde que haja para toda uma série de pessoas, em toda uma série de mercados, uma certa escassez, uma certa carestia, uma certa dificuldade de comprar trigo, uma certa fome, por conseguinte, e afinal de contas é bem possível que algumas pessoas morram de fome.[6]

Para que a população não passe fome, alguns indivíduos poderão morrer de fome. O objetivo não é acabar com a fome, mas baixar os índices de escassez até o número considerado normal segundo as médias estatísticas entre Estados, entre regiões administrativas no território nacional, etc.

É deixando essas pessoas morrerem de fome que se poderá fazer da escassez alimentar uma quimera e impedir que ela se produza com aquele caráter maciço de flagelo que a caracterizava nos sistemas precedentes. De modo que o acontecimento-escassez é assim dissociado. A escassez-flagelo desaparece, mas a escassez que faz os indivíduos morrerem não só não desaparece, como não deve desaparecer. [7]

Desta forma, vê-se que o indivíduo já não é mais o foco deste dispositivo que está se desenvolvendo: agora, fala-se da população. Vê-se, aqui o nascimento do conceito de população.


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Referências

[1] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População: curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.43.

[2] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População: curso dado no Collège de France (1977-1978)… p.43-44.

[3] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População: curso dado no Collège de France (1977-1978)… p.45.

[4] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População: curso dado no Collège de France (1977-1978)… p.49.

[5] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População: curso dado no Collège de France (1977-1978)… p.49.

[6] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População: curso dado no Collège de France (1977-1978)… p.55.

[7] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População: curso dado no Collège de France (1977-1978)… p.55.

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