Da série “Os loucos de Foucault“.
Índice
Introdução
A prática do internamento abriu espaço para a existência da loucura como desrazão, como ausência, como desatino, o não-ser durante a Idade Clássica, entretanto, o caminho para esta percepção específica se inicia numa mudança da sensibilidade à miséria e à ociosidade na Renascença. A recusa ética fundamental da loucura já estava em germe num tipo próprio de erro ético: o da recusa ao trabalho[1].
A partir de uma maneira diferente de perceber os deveres da caridade, o valor da miséria e das formas de combatê-la; do nascimento de uma nova ética do trabalho, de uma nova forma de conceber a cidade, local de união da regra moral com a lei civil; a partir de uma nova sensibilidade, a prática do internamento ganha sua primeira localização histórica. “O pobre, o miserável, o homem que não pode responder sua própria existência, assumiu no decorrer do século XVII uma figura que a Idade Média não teria reconhecido”[2].
O objetivo deste artigo é expor o papel da pobreza no início das práticas de internamento durante a Renascença que se estendeu até a criação ou adaptação das casas de internação propriamente destinadas aos loucos. tomando como base o livro História da Loucura na Idade Clássica de Michel Foucault.
Predestinação
Através de um duplo movimento, a Renascença retirou da pobreza seu status místico que organizava tanto a prática da mendicância, da ociosidade, como também da própria caridade.
“A Renascença despojou a miséria de sua própria positividade mística”[3] e inseriu a cólera divina como nova forma de comunicação de Deus com o pobre: “A miséria não é a Dama humilhada que o Esposo vem tirar da lama a fim de elevá-la; ela tem no mundo um lugar que lhe é próprio – lugar que não testemunha por Deus nem mais nem menos do que o faz a riqueza”[4]. A ideia da predestinação fez da pobreza um castigo enviado diretamente por Deus em seus planos misteriosos. Uma punição divina.
Desta forma, o alcance de Deus é igual tanto na pobreza como na riqueza. Ambas traduzem o absoluto domínio de Deus sobre os acontecimentos na Terra, entretanto, a pobreza é motivo de vergonha divina: o pobre carrega na pobreza um motivo de vergonha e uma declaração de fracasso da obra divina. Daí ser necessário conduzir o pobre a aceitar sua condição e servir de exemplo para que outros indivíduos infelizes com sua situação também consintam em ser dóceis.
A obra de caridade, neste sentido, perde seu valor: não há mais glória na pobreza, nem benefício para quem a realiza, pois o ato de caridade seria assim o próprio ato divino em uma de suas expressões concretas. A caridade passa a ocupar outro lugar na linha lógica do ato: não se faz caridade para benefício individual, se faz caridade para demonstrar a força da fé. Ou seja, as obras deixam de ter seu valor a partir de Calvino como item de salvação, mas no nível humano, elas demonstram a força da fé enraizada no princípio que estimula sua produção. “Donde esta tendência, comum a todos os movimentos da Reforma, de transformar os bens da Igreja em obras profanas”[5], marcadas pela finitude humana. Profanas, porém indícios da fé.
Com efeito, durante muito tempo é nos antigos conventos que se estabelecerão os grandes asilos na Alemanha e Inglaterra: um dos primeiros hospitais que um país luterano destinou aos loucos (arme Wahnsinnige und Presshafte) foi estabelecido pelo Landgraf Philippe de Hainau em 1533, num antigo convento dos cistercienses secularizado uma dezena de anos antes.[6]
Com isso, também, um movimento de estatização da caridade:
As cidades e os Estados substituem a Igreja nas tarefas de assistência. Instauram-se impostos, fazem-se coletas, favorecem-se as doações, suscitam-se doações testamentárias. Em Lübeck decide-se, em 1601, que todo testamento de certa importância deverá ter uma cláusula em favor das pessoas ajudadas pela cidade.[7]
A laicização das obras feita nas sociedades protestantes centraliza no Estado a administração da pobreza e, ao mesmo tempo, retira da Igreja o sentido dado à caridade e à miséria. A nova maneira de observar a miséria, já no século XVI, passa pelo reconhecimento da desordem social em sua presença e, também, o reconhecimento de que ela própria é um obstáculo para a ordem. Foucault classifica essa sensibilidade como uma nova “experiência do patético”[8].
Não se trata mais, portanto, de alimentar a existência da pobreza através da relação salvadora entre caridade e miséria: não há mais benefício ao rico nem salvação ao pobre, não somente porque se conclui que Deus não irá salvar pelas obras já que não há maneira de manipular a onisciência divina, mas também porque a própria pobreza já não é percebida como algo ligado à esfera do divino. A miséria, ao ser percebida como profana, entrega a falha humana perante Deus e, ao mesmo tempo, atende ao próprio destino já sabido por Ele.
A miséria profana precisa de supressão. Mas não através de uma supressão entregue pela caridade da Igreja, pela caridade de indivíduos específicos, identificáveis. A caridade por si só já representa a desordem que ela visa suprimir. A nova maneira de supressão da pobreza deve passar pela ordem do Estado, “a tarefa deve ser entregue aos oficiais de justiça: eles deverão dividir os condados, agrupar as paróquias, estabelecer casas de trabalho forçado. Ninguém mais deverá mendigar: ‘E ninguém será tão fútil, nem quererá parecer tão pernicioso aos olhos do público, que dê esmolas a esses mendigos ou os encorage'”[9].
Doravante, a miséria não é mais considerada numa dialética da humilhação e da glória, mas numa certa relação entre a desordem e a ordem que a encerra numa culpabilidade. Ela que, desde Lutero e Calvino, já ostentava marcas de um castigo intemporal, no mundo da caridade estatizada se tornará complacência consigo mesma e falta contra a boa marcha do Estado.[10]
De uma experiência religiosa, a miséria passou a fazer parte de uma moral que a condena. No final deste caminho, encontram-se as casas de internamento, produto da laicização da caridade e aplicadoras do castigo moral à miséria.
A internação
Se as sociedades protestantes caminharam para a dessacralização da miséria, no período de Contra Reforma o catolicismo também alcançou conclusões parecidas. As obras não perdem seu valor na doutrina católica, no entanto, tem-se a consideração de que elas devem se adequar à ordem do Estado. Antes mesmo do Concílio de Trento, que ocorreu entre 1545 a 1563,
Juan Luis Vives formulara, sem dúvida o primeiro entre os católicos, uma concepção quase inteiramente profana da caridade: crítica das formas privadas de ajuda aos miseráveis, perigos de uma caridade que alimenta o mal, parentesco demasiado frequente entre a pobreza e o vício.[11]
Aos miseráveis rebeldes, a casa de internamento era o destino; aos comportados, as casas de trabalho. No mundo católico, a assistência estatal retira o gesto glorioso da caridade individual e, ao mesmo tempo, retira também a dignidade da pobreza:
O mundo católico logo vai adotar um modo de percepção da miséria que se havia desenvolvido sobretudo no mundo protestante. Vicente de Paula aprova inteiramente em 1657 o projeto de “reunir todos os pobres em lugares próprios para sua manutenção, instruí-los e dar-lhes uma ocupação. É um grande objetivo” no qual no entanto ele hesita em comprometer sua ordem “pois não sabemos ainda muito bem se o bom Deus assim o quer”. Alguns anos mais tarde, toda a Igreja aprova a grande internação prescrita por Luís XIV.[12]
O internamento passa a ser a ordem perante a pobreza, já dessacralizada e assistida por instituições seculares. O miserável submisso saberá que o internamento é o melhor para sua vida, será internado de bom grado; o miserável insubmisso, justamente por sua insubmissão, merece o internamento e, mesmo o recusando, deverá ser internado. Duas regiões da miséria são, assim, delimitadas: uma região do bem, da pobreza dócil, em conjunto com uma região do mal, da pobreza furiosa, demoníaca.
“É essa a razão pela qual devem ser privados dessa liberdade de que fazem uso apenas para a glória de Satã. O internamento se justifica assim duas vezes, num indissociável equívoco, a título de benefício e a título de punição”[13]. E, na era Clássica, esse caráter de equívoco assume uma realidade inquestionável: a justificativa do internamento dependerá de quem está sendo internado, não necessariamente o próprio internamento é colocado em questão. Acima de tudo, a divisão entre os bons pobres e os maus pobres é a base do funcionamento do internamento, é o que faz dele uma solução inevitável. Os internos, por sua vez, não são objetos de conhecimento de possíveis estudiosos da pobreza, também não são mais alvos da piedade dos religiosos, são considerados primeiramente como sujeitos morais. Não são mais os representantes de Deus na Terra, não representam mais a figura sempre possível do próprio Jesus testando a bondade dos homens.
A Era Clássica secularizou e ordenou a caridade assim como a próprio pobreza e, com o estabelecimento do Hospital Geral no século XVII, o mundo católico atormentado pela necessidade de fazer a caridade individual acalmou seus ânimos religiosos a partir do entendimento de que a ordem estatal seria uma condição para que Deus não precisasse se transformar em miserável para testar a bondade dos indivíduos: a sociedade inteira é testada e o teste satisfeito através da assistência secular.
Considerações finais
A miséria perdia, assim, seu sentido místico na França e nas regiões próximas da Europa. Sua penitência é a consequência do erro que ela própria expressa por existir. Este modelo também é percebido por Foucault no internamento dos loucos:
Existe o hábito de dizer que o louco da Idade Média era considerado como uma personagem sagrada, porque possuído. Nada mais falso. Se era sagrado é porque, para a caridade medieval, ele participava dos obscuros poderes da miséria. Mais que qualquer outros, ele a exaltava.[14]
Após a era Medieval, os loucos passariam a ter lugar ao lado dos pobres nas casas de internamento e lá ficarão até o fim do século XVIII. A sensibilidade moral também substituirá a religiosa quando a loucura for seu objeto.
A hospitalidade que o acolhe [nas casas de internamento] se tornará, num novo equívoco, a medida de saneamento que o põe fora do caminho. De fato, ele continua a vagar, porém não mais no caminho de uma estranha peregrinação: ele perturba a ordem do espaço social.[15]
Desta forma, se, numa sensibilidade religiosa, o louco recorrente no olhar do sujeito medieval era como que trazido de outro mundo, numa sensibilidade moral, o louco nasce da própria sociedade e é justamente nela que deve ser internado. A integração de uma certa tolerância religiosa sobre a loucura é substituída pela intolerância moral àquele que recusa, fundamentalmente, a ética.
Referências
[1] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 9ª edição, 2012, p. 55-56.
[2] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 56.
[3] Idem.
[4] Idem.
[5] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 57.
[6] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 57-58.
[7] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 58.
[8] Idem.
[9] Sir Matthew Hale, Discourse Touching Provision for the Poor, IN FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 9ª edição, 2012, p. 58.
[10] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 58-59.
[11] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 59.
[12] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 60.
[13] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 61.
[14] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 62.
[15] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 63.
Cite este artigo:
SIQUEIRA, Vinicius. Antes da loucura, a pobreza – Michel Foucault. Colunas Tortas. Acesso em [DD Mês AAAA]. Disponível em <<https://colunastortas.com.br/antes-da-loucura-a-pobreza-michel-foucault/>>.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.