As causas distantes da loucura, ou do lunatismo – Michel Foucault

As causas distantes indicavam um conjunto de explicações possíveis, imediatas, mas de antecedência com a loucura. Indicavam uma distância física, uma distância que significava impotência perante a causa. No curso do século XVIII esta significação muda e um conjunto novo de condições emerge. Este conjunto insere o meio como elemento para se compreender o corpo humano e, assim, modifica a noção de causas distantes para aquilo que promove uma relação não só de antecedência, mas um novo sistema de relações causais que insere um novo tipo de corpo no olhar médico.

Da série “Os loucos de Foucault“.

Índice

Introdução

Se as causas da loucura podem ser divididas entre aquelas que são próximas, relacionadas à alma, às paixões, à percepção e ao problema específico de uma percepção equivocada que gera práticas inadequadas; e entre as distantes, relacionadas por um fator externo, por um trauma, por um humor específico, por causas que não são diretas e primárias, porém, fazem parte de um todo secundário que possibilitaria ou facilitaria o aparecimento da loucura.

Inicialmente, no século XVII, o médico alemão Michael Ettmüller forneceu exemplos de causas distantes para a convulsão:

A cólica nefrítica, os humores ácidos da melancolia, o nascimento durante um eclipse da Lua, e vizinhança das minas de metal, a cólera das amas-de-leite, os frutos de outono, a constipação, os caroços de nêspera no reto e, de modo mais imediato, as paixões, sobretudo as do amor.[1]

Uma causa distante “definida pela antecedência – relação de vizinhança que, sem excluir certa arbitrariedade, agrupa apenas coincidências e cruzamentos de fatos ou imediatas transformações patológicas”[2]. Ao longo da Idade Clássica, a noção de causa distante sofreu com transformações que modificaram a auto evidência que lhe pertencia relacionada a todo um conjunto esparso de acontecimentos antecedentes à irrupção da loucura. O objetivo deste artigo é expor a noção de causa distante conforme entendida por Michel Foucault no livro História da Loucura na Idade Clássica.


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O lunatismo

Todo o domínio orgânico foi incorporado no campo de possibilidades das causas distantes: secreções que são inibidas ou que acontecem em excesso, funcionamentos anormais do corpo em geral, eventos intensos ou violentos da alma, as variações do mundo externo, toda a sorte de violências e artifícios que o exterior pode infligir, nenhuma anormalidade foge da categorização em causa distante.

A prática de internamento gestou um campo de análise vivo e variado. No século XVIII, após a reforma do internamento, o conhecimento das causas distantes foi transferido com integridade do saber teórico à investigação prática, ou seja, de fato um dos trabalhos dos médicos que se aventuraram em investigar a natureza da loucura nos asilos era de descobrir as causas das doenças de cada interno a partir do campo, neste momento evidente, de causas distantes da loucura. As causas distantes não se portavam como possibilidade hipotética, como hipótese precavida (na medida em que a distância do acontecimento poderia desfazer o encadeamento de causas que levaria diretamente a causa até a loucura). As causas distantes eram evidentes em si, basta encontrar a causa específica deste campo de possibilidades.

Disposição hereditária, bebedeira, excesso de estudo, febres, sequelas do parto, obstrução das vísceras, contusões e fraturas, doenças venéreas, varíola, úlceras demasiado rapidamente dessecadas; reveses, inquietação, pesar; amor, ciúme; excesso de devoção e apego à seita dos metodistas; orgulho.[3]

Em contato direto com o crescimento das causas distantes, o lunatismo aparecia como tema constante e chave para o entendimento do alcance desta área de estudo:

  1. No início do século, foi tema de tese com defesa fracassada;
  2. No fim do século, a lua voltou a ser relacionada com a agitação dos loucos;
  3. Em seu retorno, a lua volta com diferenças em relação ao pensamento que se tinha no início da Idade Clássica;
  4. As condições de seu aparecimento mudaram: inicialmente, a lua era tida como causa imediata devido ao seu aparecimento (questão de tempo e espaço, completamente no poder dos astros); no fim do século XVIII,

inversamente, a influência da lua se desenvolve segundo toda uma série de mediações que se hierarquizam e se recobrem em volta do próprio homem. A lua atua sobre a atmosfera com tal intensidade, que pode pôr em movimento uma massa tão pesada quanto o oceano. Ora, o sistema nervoso é, dentre todos os elementos de nosso organismo o mais sensível.[4]

Esta descrição de um local de intermédio que pode ser delimitado e, acima de tudo, que sua dinâmica pode ser vista e seus efeitos podem ser identificados no corpo, trata-se da exposição do aparecimento do meio enquanto elemento de gestão da população. São as novas condições que possibilitam o reaparecimento do lunatismo. Assim, um lunatismo visto como causa imediata e incontrolável se transforma em um lunatismo que evidencia a atuação do meio no organismo humano. A contestação sobre os efeitos reais da lua sobre a sanidade ainda permanece no fim da Idade Clássica, mas sob outra forma também. Não se trata de negar a atuação de um poder cósmico (mas não sagrado), mas de negar uma certa sensibilidade orgânica ao meio:

Se as fases da Lua podem ter uma influência sobre a loucura, é que ao redor do homem agruparam-se elementos aos quais, mesmo sem ter disso uma sensação consciente, ele é obscuramente sensível. Entre a causa distante e a loucura se inseriram, de um lado a sensibilidade do corpo, e do outro o meio ao qual ele é sensível, esboçando já uma quase unidade, um sistema de pertinência que organiza, numa nova homogeneidade, o conjunto das causa distantes ao redor da loucura.[5]

O lunatismo tem local privilegiado para a observação da mudança na composição do campo de causas distantes pois foi alvo das mudanças nas condições de possibilidade de seu aparecimento. Se a história da loucura é uma busca pelas condições de possibilidade, a reconstituição do funcionamento do lunatismo em todo o jogo de elementos causais à loucura é essencial: de uma causa distante, mas direta e não controlável, para uma causa múltipla, conjunto amplo que liga a causa da loucura, a Lua, e o efeito, o indivíduo louco, através do meio, da atmosfera. Da consideração de um poder cósmico para a consideração de uma sensibilidade orgânica.

Considerações finais

O próprio sistema das causas da loucura sofreu, assim, grande alteração no decorrer do século XVIII:

As causas próximas não cessaram de aproximar-se, instituindo entre a alma e o corpo uma relação linear que apagava o antigo ciclo de transposição das qualidades; as causas distantes não cessava, ao mesmo tempo, pelo menos na aparência, de ampliar-se, multiplicar-se e dispersar-se, mas de fato, sob essa ampliação, esboçava-se uma nova unidade, uma nova forma de ligação entre o corpo e o mundo exterior.[6]

O tema do lunatismo é importante mais pelas considerações sobre o meio que sobre a própria loucura. As observações sobre o corpo são mais importantes que as considerações sobre o cosmos. Na Idade Clássica, a medicina inseriu em seu campo teórico uma noção de corpo caracterizado por estar envolto em diferentes sistemas de causalidade lineares. Ao mesmo tempo, este novo corpo, afetado de diferentes maneiras, já poderia ser entendido como um corpo sensível. Sensível a diferentes fatores externos, finalmente delimitado em seus pontos e momentos de sensibilidade com o meio.

Tanto a anatomia do cérebro como a umidade do ar passaram a ser fatores considerados na mesma análise. A rejeição ao lunatismo acontece sob condições específicas de transformação no próprio corpo e sua unidade com a alma, sua relação com as paixões e com o mundo externo que as desregulam.

Figuras do desatino

Referências

[1] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 9ª edição, 2012, p. 222.

[2] Ibidem.

[3] BLACK, On insanity IN FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 223.

[4] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 224.

[5] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 225.

[6] Ibidem. Grifado nosso.

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