Um tuíte foi necessário para perturbar a vida de um pedaço da direita brasileira.
Lula exaltou o jogador argentino Lionel Messi em sua oitava conquista da Bola de Ouro, exaltou seu profissionalismo e os resultados que conseguiu com 36 anos, idade avançada para um jogador profissional.
Abaixo, o tuíte de Lula:
O Messi deveria servir de exemplo aos jogadores brasileiros. O cara com 36 anos, campeão do mundo, com Bola de Ouro e tudo. O Messi precisa ser inspiração de dedicação para essa molecada. Quem quiser ganhar Bola de Ouro tem que se dedicar, tem que ser profissional. Não combina…
— Lula (@LulaOficial) October 31, 2023
Evidentemente, quando diz que a vitória da Bola de Ouro “Não combina com farra, não combina com noitada”, na prática, o alvo perfeito é facilmente entendido: Neymar. Com a habilidade retórica típica de uma pessoa educada na cultura brasileira, Lula faz uma crítica sem citar seu alvo. É claro que muitos jogadores de futebol cabem nesta crítica, mas é evidente que a figura de Neymar é a mais destacada, a mais fortemente relacionada à farra, à noitada e que, ao mesmo tempo, tem condições técnicas de ganhar a Bola de Ouro.
Sem ingenuidade: o enunciado pode não ter sido direcionado diretamente ao jogador, mas ele é o encaixe perfeito na nossa realidade concreta.
O resultado foi uma saraivada de respostas de Neymar que, no ápice de sua indignação, ofendeu Lula diretamente o chamando de bêbado e presidiário.
Agora, a parte mais importante e que me fez redigir este texto: esta cutucada de Lula a Neymar é uma cutucada a uma categoria de atores políticos que foram contra a eleição do petista. Os jogadores profissionais de destaque, em geral, apoiaram a reeleição de Bolsonaro ou se abstiveram de emitir suas opiniões. O campo social do futebol, no Brasil, é extremamente conservador, machista, inclinado a constituir sujeitos direitistas mesmo com origem pobre.
Mas como isso acontece?
A disciplina exigida aos jogadores de futebol desde as categorias de base até a idade adulta é próxima ao modelo disciplinar. A hierarquia presente na estrutura de um clube e nas relações entre jogadores de base e equipe técnica é marcada por uma submissão que acontece desde a tenra idade. Recomendo o artigo “Categorias de base de futebol: território de trabalho infantil” de Honor de Almeida Neto e Everton Rodrigo Santos, publicado na revista Iluminuras em 2018.
Os jogadores são disciplinados desde cedo. Jogadores de futebol são disciplinados a serem corpos dóceis, corpos úteis a um propósito esportivo e econômico. A sociedade machista, patriarcal, disciplinar, enfim, marca o corpo dos jogadores desde suas infâncias.
Há uma similaridade na formação do corpo do jogador com a formação do corpo do soldado. Ambos, no Brasil do presente, são bolsonaristas. A formação discursiva bolsonarista interpela seus sujeitos do discurso não só pela fome de punição, mas também pela disciplina travestida de moralidade. O processo de interpelação pela moralidade da disciplina só termina quando saem do fluxo de trabalho nas categorias de base e no futebol profissional.
Figuras como Daniel Alves, Robinho, Cuca, Jean, Antony e etc não agrediram mulheres por terem algum desvio individual: o futebol é produtor dessas violências. A disciplina masculina é produtora disso e também é produtora da seguinte frase: “Eu não te estupro porque você não merece”, manifestada por Jair Bolsonaro quando ainda era deputado para a também deputada Maria do Rosário.
Acredito ser um erro buscar a ligação entre os jogadores de futebol de primeiro escalão e o bolsonarismo através de um olhar sobre o deslumbramento pelo dinheiro. Não há deslumbramento: a ligação é anterior à consciência, é aquilo que dá condição de possibilidade de uma consciência moral baseada em ser uma pessoa de bem.
Uma pessoa de bem, no Brasil, é uma pessoa disciplinada. É um sujeito com o corpo marcado pela hierarquia. Trata-se de um corpo que universaliza a necessidade da dor para o aprendizado, a necessidade da punição para a educação. Essas duas formas-sujeito não são distantes do senhor que posta nas redes sociais que apanhou, mas ainda está vivo e aprendeu a ser gente através da surra que seus pais lhe davam.
A violência que essas formas-sujeito compartilham é da correção. É a violência que, discursivamente, se coloca como forma de amor.
E não, Neymar não ganhará uma Bola de Ouro.
Já sou velho, mas olho para o mundo a partir de seu ineditismo, nunca sob o ranço interminável dos anciãos.
Concordo, mas me pergunto: a lógica reproduzida no comentário de Lula não acaba corroborando com essa mesma lógica da correção e corpo disciplinado?