O enunciador – Dominique Maingueneau

Desta forma, entende-se o enunciador como uma instância que aparece na enunciação do locutor e que, justamente por sua característica de instância linguística/discursiva, possibilita a fala de posições diferentes, opostas das suas. O enunciador, assim, não é a pessoa, o falante, o sujeito falante, o enunciador é um momento de existência no processo de enunciação, um momento de separação da fonte do que se diz, que pode se confundir com o locutor ou não, podendo ser inclusive seu oposto.

Índice

Introdução

Há uma instância a ser identificada e entendida em seus limites e em seu alcance. Esta instância, que pode ser entendida como uma “forma-sujeito” específica para a análise em seu nível linguístico, é a do enunciador. Uma instância demarcada: o que de fato se pode entender como enunciador, o que se pode esperar de sua figura e o que se pode entender da função exercida por este tipo específico delimitam seu alcance e funcionalidade teórica.

Evidentemente, o objetivo não é debater a forma-sujeito nem mesmo comparar a maneira como Michel Pêcheux ou Michel Foucault utilizam o conceito com a forma como Dominique Maingueneau, autor principal neste artigo, delimita o enunciador. O objetivo deste artigo é somente delimitar de maneira operacional, introduzindo teoricamente a necessidade de entender o enunciador enquanto algo que é e não é, ao mesmo tempo, o sujeito empírico e que pode assemelhar-se com o conceito de posição (no sentido sociológico), mas também pode ser entendido como uma função (no sentido foucaultiano) ou como uma etapa evidente da prática discursiva de um sujeito interpelado por uma formação discursiva específica (no sentido pecheuxtiano).

Pois, em Maingueneau, o enunciador é capaz, é definido por:

– ser capaz de reconhecer enunciados como “bem formados”, isto é, como pertencentes a sua própria formação discursiva,

mas também

– ser capaz de produzir um número ilimitado de enunciados inéditos pertencentes a essa formação discursiva.[1]

Assim, o enunciador está interligado à noção de contexto, por exemplo. O enunciador é capaz de compreender o contexto, mas, acima de tudo, de se integrar ao contexto de tal maneira que sua participação é parte de um fluxo de reconhecimento de enunciados “bem formados” e da produção “bem formada” de enunciados concretamente inéditos mas que, por serem bem formados, de fato pertencem a formação discursiva que abre espaço para a prática discursiva do enunciador.


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Uma instância

Na medida em que é capaz, o enunciador, por definição, não se coloca em posição de falsear o enunciado de seu outro, “se ele procura ‘imitá-los’, só poderá produzir textos decorrentes de sua própria competência”[2]. Ou seja, o enunciador que se limita pelo seu outro, que pode ser entendido como o oposto de seus enunciados possíveis numa dada formação discursiva, quando abre espaço para a exposição de seu outro, esta exposição se faz a partir de um afastamento, “aqueles que pensam assim…”, “há quem considere que…”.

Se indagarmos em que condições um discurso pode “dar a palavra” a seu Outro, devemos responder que uma posição enunciativa não pode sair de seu fechamento semântico, que ela só pode emprestar-lhe suas próprias palavras, manifestando-se, assim, a irredutível descontinuidade que funda o espaço discursivo.[3]

Pois, na medida em que o Outro é justamente o que limita o enunciador e suas possibilidades, a sua manutenção é essencial para a própria possibilidade de inserir o enunciador no discurso.

Ao contrário dos imitadores e dos falsários, que escolhem aqueles que vão imitar com motivações ideológicas relativamente “distanciadas”, ele [o enunciador] é condenado a produzir simulacros desse Outro, e simulacros que são apenas seu avesso.[4]

O enunciador, portanto, está fadado à sinceridade, enquanto o sujeito falsário, como no exemplo acima, este sim está livre para dar realidade às suas motivações ideológicas distanciadas. São níveis diferentes: o sujeito falsário está composto por níveis da existência (uma função social, uma posição social, um lugar de enunciação, um gênero, um estatuto jurídico, etc), o enunciador é a presença de um nível específico em que uma fonte de sentido (um espaço de vazão, não propriamente de invenção) é relacionada à produção verbal (e ao seu sentido). Pois

O enunciador representa, de certa forma, frente ao “locutor” o que o personagem representa para o autor em uma ficção. Os “enunciadores” são seres cujas vozes estão presentes na enunciação sem que se lhes possa, entretanto, atribuir palavras precisas; efetivamente, eles não falam, mas a enunciação permite expressar seu ponto de vista. Ou seja, o “locutor” pode pôr em cena, em seu próprio enunciado, posições diversas da sua.[5]

Desta forma, o locutor, aquele que de fato fala, insere o enunciador em sua enunciação, alterando suas fontes enquanto fala para que seu discurso atinja um fim específico no contexto determinado. É assim que o locutor insere posições diferentes das suas, criando simulacros, por exemplo, de seu Outro. O sujeito enuncia “pelo Outro”, mas a partir da própria composição do sujeito que fala e do enunciador possível na formação discursiva que estabelece a possibilidade do discurso indireto em relação ao seu Outro. Segundo Dominique Maingueneau:

hablar del “enunciador” es referirse a la vez a una instancia de la situación de enunciación linguistica, a una instancia ligada al género de discurso y eventualmente a una instancia ligada a la escena de habla instituida por el discurso mismo. Para el analista del discurso toda la dificultad reside, pues, en la articulación entre plan lingüístico y plan textual, regulados ambos por imperativos discursivos.[6]

O enunciador, assim, distante do sujeito empírico, distante do locutor, mas sempre presente em suas enunciações, é uma instância que surge de maneira confusa (porque heterogênea) ao longo da própria prática discursiva ligada a um gênero e a uma cena discursiva.

Considerações finais

Desta forma, entende-se o enunciador como uma instância que aparece na enunciação do locutor e que, justamente por sua característica de instância linguística/discursiva, possibilita a fala de posições diferentes, opostas das suas. O enunciador, assim, não é a pessoa, o falante, o sujeito falante, o enunciador é um momento de existência no processo de enunciação, um momento de separação da fonte do que se diz, que pode se confundir com o locutor ou não, podendo ser inclusive seu oposto. O enunciador é sincero pois confiável, é o fiador da fala e “a imagem do fiador é revelada no discurso, no momento em que o enunciador toma a palavra, dentro de uma determinada instância enunciativa, através dos modos de dizer do sujeito”[7].

Enquanto uma instância, está delimitado pelas suas possibilidade segundo o gênero do discurso, segundo o tipo específico de discurso e, assim, segundo as possibilidades que a formação discursiva entrega. O dito do enunciador é sincero, mas sua sinceridade não se encontra em seu núcleo psicológico: o enunciador é sincero porque, para ser enunciador numa da cena de enunciação, é necessário que seja capaz de participar da comunicação ensejada por um assunto num gênero específico. Segundo Maingueneau:

O enunciador não é um ponto de origem estável que se ‘expressaria’ dessa ou daquela maneira, mas é levado em conta em um quadro profundamente interativo, em uma instituição discursiva inscrita em uma certa configuração cultural e que implica papéis, lugares e momentos de enunciação legítimos, um suporte material e um modo de circulação para o enunciado.[8]

Desta forma, a citação mesmo que indireta do outro se dá através das próprias capacidades de produção de enunciados do sujeito que, em sua prática, está possibilitando o aparecimento da instância do enunciador com todas as suas delimitações discursivas já expostas anteriormente.

Referências

[1] MAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos discursos. São Paulo: Parábola Editorial, 2008, p.54.

[2] MAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos discursos… p.55.

[3] Idem.

[4] Idem.

[5] MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. 3ª ed. Campinas, SP: Pontes: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1997, p. 77.

[6] CHARAUDEAU, P.; MAINGUENEAU, D. Enunciador IN Diccionario de análisis del discurso. 1. ed. Buenos Aires: Amorrortu, 2005, p.218.

[7] SILVEIRA, Germínia M. M. L. Ethos no discurso: trilhando um percurso teórico. Nova Revista Amazônica, v. 2, n. 1, Jan./Jun. 2014, p. 72-83.

[8] MAINGUENEAU, Dominique. Ethos, cenografia, incorporação IN SILVEIRA, Germínia M. M. L. Ethos no discurso: trilhando um percurso teórico. Nova Revista Amazônica, v. 2, n. 1, Jan./Jun. 2014, p. 72-83.

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