O pastor – Michel Foucault

O pastor é um líder que, através de estratégias de condução, guia seu rebanho ao objetivo que todos querem alcançar. Não há espaço para ganho próprio nem para objetivos privados: o pastor é um sujeito que funciona através de uma justificativa exterior, pois é Deus que lhe envia para guiar o rebanho à salvação.

Da série “O pastorado“.

O pastor em Michel Foucault

Índice

Introdução

Nos escritos de Michel Foucault, a figura do pastor é central no exercício do poder pastoral e, no desenvolvimento das formas de governamentalidade, este pastor adquire uma nova forma e um valor destacável. Ele se movimenta levemente entre suas ovelhas e, com olhar individualizado, separa e encaminha cada uma para o melhor caminho possível em direção da salvação. Trata-se de um sujeito que, abdicando de sua preocupação consigo, preocupa-se com todos.

O objetivo deste artigo é descrever a função do pastor na dinâmica do poder pastoral e relacioná-lo com o ímpeto do cuidado, do zelo pretendido por esta figura a partir de um entendimento do sujeito enquanto posição, enquanto lugar constituído externamente que indiferentes indivíduos podem ocupar. Para isso, tomarei como base o livro Segurança, Território, População.


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O zelo

O pastor zela. Sua expressão social está na qualidade do zelo, do benfazejo que sua função promove. O pastor é um executor do poder que se manifesta pelo cuidado do outro, nunca de si. Sendo assim, diferentemente de um líder soberano, de um líder que se impõe sobre os outros e os considera recursos para uma atividade específica, o pastor aparece enquanto administrador da salvação, guia e condutor de uma vida próspera. Segundo Foucault:

O poder pastoral se manifesta inicialmente por seu zelo, sua dedicação, sua aplicação infinita. O que é o pastor? Aquele cujo poder fulgura aos olhos dos homens, como os soberanos ou como os deuses, em todo caso os deuses gregos, que aparecem essencialmente pelo seu fulgor? De jeito nenhum. O pastor é aquele que zela.[1]

Desta forma, se afastando do medo e da impotência, o pastor não se revela enquanto figura de afastamento. A aproximação do rebanho ao pastor, no poder pastoral, não se faz através do medo da punição nem através da admiração temerária de uma força incomensurável: a aproximação é, de certa forma, amorosa, ou então é revelada por uma impotência em relação ao caminho a ser seguido, nunca em relação à força a ser aplicada.

Evidentemente, o zelo do pastor é aquele que vigia, mas não no sentido disciplinar, numa vigilância pela adequação, numa vigilância que está indissociada da possibilidade de punição, que está intimamente ligada a uma norma ideal. A vigilância do pastor aponta para a proteção:

“Zela”, é claro, no sentido de vigilância do que pode ser feito de errado, mas principalmente como vigilância a propósito de tudo o que pode acontecer de nefasto. Ele vai zelar pelo rebanho, afastar a desgraça que pode ameaçar qualquer animal do rebanho. Vai zelar para que as coisas corram o melhor possível para cada um dos animais do rebanho.[2]

Trata-se de uma vigilância contra o mal. Uma vigilância que mantém claro o caminho de cada ovelha, desta forma, que possibilita que as ovelhas andem autonomamente pelo caminho que somente o pastor tem a qualidade de guia. Foucault salienta que o pastor “vai zelar pelo rebanho, afastar a desgraça que pode ameaçar qualquer animal do rebanho. Vai zelar para que as coisas corram o melhor possível para cada um dos animais do rebanho”[3].

Apesar da noção de pastor fosse comum também na cultura egípcia, foi a cultura hebraica que a disseminou num sentindo “bom”. Erika Pretes e Túlio Vianna salientam que

no Egito, o faraó, durante o rito de sua coroação, era designado como o pastor dos homens, recebia as insígnias de um pastor e um cajado. Esta relação de pastoreio era também estabelecida entre o Deus-pastor para com os homens nas monarquias assírias e babilônicas.[4]

O deus-pastor hebraico também, pois guia o povo para a terra destinada. O povo, claro, dependente deste Deus por estar sob o julgo de outras potências. Segundo Barros II: “O poder pastoral caracteriza-se pelo cuidado dos outros, o qual muitas vezes é necessário porque o outro está numa situação de dependência”[5]. Novamente, Foucault:

Ele vai zelar pelo rebanho, afastar a desgraça que pode ameaçar qualquer animal do rebanho. Vai zelar para que as coisas corram o melhor possível para cada um dos animais do rebanho. É assim no caso do Deus hebraico, também é assim no caso do deus egípcio, de que se diz: “Ó Rá, que velas quando todos os homens dorme, que procuras o que é benéfico para teu rabanho…”.[6]

O pastor recebe de Deus a incumbência de zelar pela integridade de seu rebanho, de conduzi-lo até a fonte inesgotável de recursos para sobrevivência, pois ele era considerado “um líder, um governante no sentido moral, uma espécie de representante direto de Deus na Terra”[7], nas palavras de Igor Barros. O pastor, para zelar pelo rebanho, pode até mesmo sacrificar uma ovelha, pois “se uma das ovelhas for considerada um foco de pestilência, configurando-se em um risco para todo o rebanho, mediante a contaminação geral do grupo, o pastor está autorizado a afastá-la do grupo ou até mesmo a eliminá-la”[8].

Pelo bem do rebanho, o pastorado envolve também o sacrifício de ovelhas contagiosas. Cuida-se de todo o rebanho e, ao mesmo tempo, observa-se cada uma.

O outro

Fica patente a característica principal do pastor: ele observa seu rebanho, anula-se enquanto elemento principal, dobra-se pelo bem-estar daqueles que são guiados e, deles, não retira nenhuma vantagem. Pois

ele tem um encargo, que não é definido de início pelo lado honorífico, que é definido de início pelo lado fardo e fadiga. Toda a preocupação do pastor é uma preocupação voltada para os outros, nunca para ele mesmo. Está aí, precisamente, a diferença entre o mau e o bom pastor.[9]

Resumidamente, pode-se dizer que:

  1. O mau pastor: “O mau pastor é aquele que só pensa no pasto para seu próprio lucro, que só pensa no pasto para engordar o rebanho que poderá vender e dispersar”[10], ou seja, é o líder que se aproveita de seu rebanho enquanto recurso, é o líder que administra por um objetivo privado. É aquele que não foi designado, mas que, por habilidade ou força, conduz uma fonte de recursos para atingir objetivos que são só seus.
  2. O bom pastor: “O bom pastor só pensa no seu rebanho e em nada além dele. Não busca nem seu proveito próprio no bem-estar do rebanho”[11]. O bem-estar do rebanho é o ponto final.

Desta forma, compreende-se que o poder do pastor é essencialmente ligado ao voluntarismo. Um poder que se exerce ao oferecimento voluntário do próprio poder pelo bem do rebanho.

Creio que vemos surgir aí, esboçar-se aí um poder cujo caráter é essencialmente oblativo e, de certo modo, transicional. O pastor está a serviço do rebanho, deve servir de intermediário entre ele e os pastor, a alimentação, a salvação, o que implica que o poder pastoral, em si, é sempre um bem. Todas as dimensões de terror e de força ou de violência temível, todos esses poderes inquietantes que fazem os homens tremer diante do poder dos reis e dos deuses, pois bem, tudo isso se apaga quando se trata do pastor, seja ele o rei-pastor ou o deus-pastor.[12]

Um poder que se movimenta através da base discursiva de um tipo específico de governo, de condução das condutas, e de um tipo específico de objetivo, que é a salvação. Parte-se do princípio de que todos os (e cada um dos) indivíduos sob a égide do pastor estão em busca da salvação, que vivem pela salvação religiosa: é daí que vem o motor da caminhada que terá no pastor, o guia. O guia, por sua vez, é só mais um, com status privilegiado, mas só mais um. Ele também será salvo e sua função de guia é um fardo.

Considerações finais

É necessário considerar que o pastor não é responsável por um território, afinal, a caminha, a condução é seu objetivo. Não se trata de um soberano, obviamente. O pastor é responsável pelo rebanho e pelo caminho necessário para chegar até o bem-estar, até a salvação (e aqui, eu insisto no objetivo cristão do pastorado).

O pastor, assim, é um líder que, através de estratégias de condução, guia seu rebanho ao objetivo que todos querem alcançar. Não há espaço para ganho próprio nem para objetivos privados: o pastor é um sujeito que funciona através de uma justificativa exterior, pois é Deus que lhe envia para guiar o rebanho à salvação. Num contexto político moderno, seria como a figura do político que é eleito pela população para guiar a sociedade ao bem-estar, à estabilidade social, à melhora econômica – sem legislar em causa própria, sem agir por interesses privados, já que o interesse da população seria parte do seu, que é somente parte da população.


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Referências

[1] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População: curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 171.

[2] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 171.

[3] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 171.

[4] PRETES, Erika; VIANNA, Túlio. Do pastorado ao governo (bio)político dos homens: notas sobre uma genealogia da governamentabilidade. Rev. Epos, Rio de Janeiro , v. 5, n. 1, p. 131-156, jun. 2014 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2178-700X2014000100008&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 07 ago. 2023.

[5] BARROS II, João R. Poder pastoral e cuidado de si em Foucault. Foz do Iguaçu: EDUNILA, 2020, p. 9.

[6] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 171.

[7] BARROS, Igor C. A emergência da população como problema político: o conceito de governamentalidade em Michel Foucault. Existência e Arte – Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética da Universidade Federal de São João Del-Rei, ANO XI, Número XI, 2018, p. 11.

[8] BARROS II, João R. Poder pastoral e cuidado de si em Foucault… p. 25.

[9] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 171.

[10] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 171.

[11] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 171.

[12] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 171-172.

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