Da série “Biopoder“.
Índice
Introdução
O entendimento foucaultiano da população, ou seja, da emergência da população enquanto ator político no século XVIII, passa pela compreensão de um novo tipo de prática de poder, um tipo que assume na população não mais um conjunto de súditos (como numa administração clássica monarca) que a entende, de certa forma, como a representação material da consistência do poder monárquico. Este novo tipo de prática de poder se refere propriamente a uma forma de governo. O governo, ou a governamentalidade, trata-se de uma prática de condução de condutas. Tudo se passa como se os desejos individuais estivessem sendo satisfeitos a cada ação de governo, na medida em que as ações de governo, distantes de um modelo clássico de repressão, atuam no modelo da condução, do guia, do pastor[1].
A população não é submetida. Não está à mercê. Ela vive, deseja, se movimenta, produz.
Não se trata de obter a obediência dos súditos em relação à vontade do soberano, mas de atuar sobre coisas aparentemente distantes da população, mas que se sabe, por cálculo, análise e reflexão, que podem efetivamente atuar sobre a população.[2]
Ou seja, se trata de, a partir de considerações acerca das taxas de natalidade, acerca dos locais de maior criminalidade, acerca das condições de produção do desvio, atuar (a partir de cálculo, de pesquisa, de entendimento do normal e da norma) sobre a população. Não se trata de mandar na população, mas de atuar de tal forma que a população seja afetada. Um exemplo de governo são as políticas de controle ou crescimento de natalidade a depender do momento histórico de um dado Estado-nação.
Entretanto, a população não é a única figura que aparece neste contexto de análise: há uma figura negativa da população, uma figura que se enquadra quase como uma não-população, ou uma população em potencial. Entender a figura do povo na análise de Michel Foucault será o objetivo deste artigo a partir do curso, posteriormente publicado em forma de livro, Segurança, Território, População.
A não-população
Para compreender a nova presença do povo ao lado do nascimento da população, é necessário entender, com Foucault, uma dinâmica presente na discussão sobre a fome enquanto flagelo na Europa do século XVII. Entende-se que, para o controle da escassez de trigo e eliminação da fome enquanto flagelo social, é necessário uma série de movimentos, uma série de comportamentos que, em seu conjunto, facilitam a distribuição do trigo antes das possíveis altas de preço:
A escassez-flagelo é uma quimera, está bem. Ela é uma quimera, de fato, contanto que as pessoas se comportem devidamente, isto é, que umas aceitem suportar a escassez-carestia e que as outras vendam seu trigo no devido momento, isto é, bem cedo, contanto que os exportadores despachem seu produto assim que os preços começarem a subir.[3]
O entendimento do problema social passa pela condução do comportamento da população, de cada indivíduo, em conformidade e em composição com este sujeito coletivo. “Tudo isso é muito bonito, e temos aí, não digo os bons elementos da população, mas comportamentos que fazem que cada um dos indivíduos funcione como membro, como elemento dessa coisa que se quer administrar da melhor maneira possível, a saber, a população”[4].
Membros. A população, do ponto de vista da governamentalidade, é composta por membros que, ao serem conduzidos, transformam a realidade social de acordo com os desígnios do poder governamental. Aqui, é necessário expor que o tipo de poder que carrega as técnicas de governo da maneira como estão sendo tratadas neste texto é o biopoder. A população é composta por membros individuais que, em sua natureza, fazem parte da mesma espécie e, em seu nível político, funcionam como a raiz do poder de Estado. Os membros, por pressuposto, aceitam (de maneira metafórica, pois não se trata, em Foucault, de pesquisar as opiniões das pessoas que fazem parte da população para, num momento posterior, entender se a mentalidade de época envolvia a aceitação consciente ou a recusa consciente combatida por uma repressão estatal) a condução biopolítica, configuram o que de fato se delimita como população.
Eles agem como membros da população devem agir. Mas suponham que num mercado, numa cidade dada, as pessoas, em vez de esperar, em vez de suportar a escassez, em vez de aceitar que o cereal seja caro, em vez de, por conseguinte, aceitar comprar pouca quantidade dele, em vez de aceitar passar fome, em vez de aceitar [esperar] que o trigo chegue em quantidade suficiente para que os preços caiam ou, em todo caso, para que a alta se atenue ou se estabilize um pouco, suponham que em vez disso, por um lado, elas se atirem sobre as provisões, se apropriem delas sem pagar, suponham que, pro outro lado, haja um certo número de pessoas que pratiquem retenções de cereal irracionais ou mal calculadas, e tudo irá encrencar.[5]
Desta situação, emergem revoltas populares ou açambarcamentos, às vezes ambos. Eventos que são o oposto da estabilidade proposta pelo governo, o oposto da previsibilidade que o biopoder tanto preza. Aqui, é possível observar o pedaço da população que pode ser entendido como a presença do desvio na norma, a presença do erro no acerto, a presença do outro social no eu coletivo da população. A presença da não-população na população.
Tudo isso prova que essas pessoas não pertencem realmente à população. O que são elas? Pois bem, são o povo. O povo é aquele que se comporta em relação a essa gestão da população, no próprio nível da população, como se não fizesse parte desse sujeito-objeto coletivo que é a população, como se se pusesse fora dela, e, por conseguinte, é ele que, como povo que se recusa a ser população, vai desajustar o sistema.[6]
Entretanto, este povo que, no seio da população se comporta como se não fizesse parte dela, demonstra a fraqueza da ação do Estado. Evidenciam a necessidade de punir além de guiar, de deixar morrer (e, no limite, fazer morrer) para além de fazer viver. O povo é a realidade concreta que o planejamento biopolítico não consegue evitar, é o excedente de trabalho que o biopoder separa às técnicas disciplinares ainda vigentes e concomitantes à sua própria estratégia de poder.
A ingenuidade do povo
Entretanto, se o povo é o negativo da população, está longe de ser seu oposto. Primeiramente, a divisão entre povo e população remonta a própria teoria do Estado e do funcionamento do direito (que em John Locke e o Segundo Tratado do Governo Civil já se evidenciava):
[Essa divisão] é relativamente próxima sob certos aspectos, que ela faz eco, que ela tem uma espécie de simetria em relação ao pensamento jurídico que dizia, por exemplo, que todo indivíduo que aceita as leis do seu país assina um contrato social, aceita-o e o revalida a cada instante em seu próprio comportamento, enquanto aquele que, ao contrário, viola as leis, rasga o contrato social, este torna-se estrangeiro em seu próprio país e, por conseguinte, cai sob as leis penais que vão puni-lo, exilá-lo, de certo modo matá-lo.[7]
Num nível sincrônico, é possível conceber o povo como o oposto da população, ou seja, como a parte não adequada da população. O povo, assim, como a subtração da norma de dentro da população. O próprio autor insere a figura do delinquente como aquele que está do lado de fora do sujeito coletivo da população, como um exemplo do povo que “aparece como sendo, de uma maneira geral, aquele que resiste à regulação da população, que tenta escapar desse dispositivo pelo qual a população existe, se mantém, subsiste, e subsiste num nível ótimo”[8].
É a partir de uma precaução do próprio autor que o título desta seção se faz real: “apesar da simetria aparente em relação ao sujeito coletivo do contrato social, é na verdade de uma coisa diferente que se trata e [que] a relação população-povo não é semelhante à oposição sujeito obediente/delinquente”[9].
Entretanto, ao longo de Segurança, Território, População, Foucault empreende uma genealogia da literatura política do fim da Idade Clássica e início da modernidade contrapondo O Príncipe de Nicolau Maquiavel a uma tradição antimaquiavélica que se forma baseada não nos conflitos externos, mas na administração interna. Ao seguir com Francis Bacon e tendo como base seu Ensaio sobre sedições e distúrbios, segue com sua análise sobre o foco interno da administração estatal e chega até o povo: “De fato, como diz Bacon, é uma das propriedades, uma das características da ingenuidade do povo indignar-se com coisas que não valem a pena e aceitar, em compensação, coisas que não deveria tolerar”[10].
Desta forma, a emergência da população se dá num contexto de mudança de foco político: não se trata mais de observar as relações externas de um principado, de buscar sua proteção através da análise daquilo que lhe é exterior. “O problema é o povo. Para Bacon, o povo é tão ingênuo quanto em Maquiavel. Mas é ele que vai ser o objeto essencial do que justamente deve ser o governo de um Estado”[11].
O povo é ingênuo.
O problema do governo não são os rivais do príncipe, é o povo, porque os grão-senhores, mais uma vez, podem ser comprados e podem ser decapitados. Eles são próximos do governo, ao passo que o povo é uma coisa ao mesmo tempo próxima e distante. ele é realmente difícil, é realmente perigoso. Governar vai ser essencialmente governar o povo.[12]
Se a população é a raiz do poder de Estado, é necessário transformar o povo em população (reformá-lo ou exclui-lo). Os rivais interessam menos: a guerra já dá conta deste tipo de conflito; o povo, a vida dentro dos limites do Estado, esta vida que precisa ser governada. A prática de governo voltada para dentro funda a governamentalidade e a torna coerente a emergência da estratégia biopolítica.
Considerações finais
Entende-se, assim, que o povo não é o oposto delinquente da população. Não se trata somente disso e essa oposição não é central. O povo é o objeto a ser administrado, gerido pelo Estado a partir de uma ciência própria. O povo é ingênuo e, em sua ingenuidade, pede um pastor que o guie pelo melhor caminho, que evite sofrimento em demasia e, ao mesmo tempo, a selvageria contra alvos não adequados.
A condução das condutas dos membros do povo constitui o governo sobre a população. A população, por sua vez, é o resultado da filiação (consciente ou não) dos indivíduos aos desígnios do poder que a governa.
Referências
[1] SIQUEIRA, Vinicius. O nascimento da população – Michel Foucault. Colunas Tortas, 2021. Disponível em <<https://colunastortas.com.br/populacao-michel-foucault/>>. Acesso em 21 out 2022.
[2] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População: curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.92.
[3] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População: curso dado no Collège de France (1977-1978)… p. 56-57.
[4] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População: curso dado no Collège de France (1977-1978)… p. 57.
[5] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População: curso dado no Collège de France (1977-1978)… p. 57.
[6] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População: curso dado no Collège de France (1977-1978)… p. 57.
[7] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População: curso dado no Collège de France (1977-1978)… p. 57-58.
[8] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População: curso dado no Collège de France (1977-1978)… p. 58.
[9] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População: curso dado no Collège de France (1977-1978)… p. 58.
[10] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População: curso dado no Collège de France (1977-1978)… p. 359.
[11] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População: curso dado no Collège de France (1977-1978)… p. 362.
[12] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População: curso dado no Collège de France (1977-1978)… p. 362.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.