São espaços que funcionam de maneira diferente – Michel Foucault

As heterotopias não são estrutura fixas e, sendo contraespaços, também assumem novas formas nos mesmos lugares físicos ou através dos mesmos rituais que, ao longo do tempo ou de lugar em lugar, tendem a se modificar simbolicamente e concretamente. São espaços que morrem e nascem a depender das condições entre relações de poder e tipos de saber de um dado período num espaço determinado.

Da série “As heterotopias“.

Apesar de existirem em todas as sociedades, as heterotopias não existem como uma estrutura, não são fixas e nem regulares. O segundo princípio da heterotopologia proposto por Michel Foucault é indicado da seguinte maneira: “toda sociedade pode perfeitamente diluir e fazer desaparecer uma heterotopia que constituíra outrora, ou então, organizar uma que não existisse ainda”[1].

Nascem e morrem, mas também reaparecem sob outras formas e com outras funções específicas. Heterotopias são outros lugares que organizam uma certa repulsa.


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São diferentes entre si, além de serem diferentes ao longo do tempo na mesma sociedade. Segundo Karoline Pereira, “isso quer dizer que cada heterotopia possui um funcionamento que lhe é próprio e que, dependendo da cultura da sociedade a qual pertença e do tempo, pode vir a ter um funcionamento diferentes”[2]. Ou seja, seu aparecimento não é ordenado de maneira previamente harmônica com o restante dos espaços. Justamente por ser um outro espaço, ela nasce sob a forma de um contraespaço.

Michel Foucault exemplifica uma maneira de fazer uma heterotopia funcionar diferentemente e uma maneira de simplesmente dilui-la. Para isso, recorre à figura dos prostíbulos e a mudança da relação de prostituição com o advento da tecnologia, mas também recorre ao exemplo dos cemitérios, que adquiriram novo status a partir do século XIX na França:

Por exemplo, há cerca de vinte anos, a maioria dos países da Europa tentou fazer desaparecer as casas de prostituição, com sucesso reduzido, como se sabe, pois o telefone substituiu a velha casa de nossos avós por uma teia fina e bem mais sutil. Em contrapartida, o cemitério, que é para nós, em nossa experiência atual, o mais evidente exemplo da heterotopia (o cemitério é absolutamente o outro-lugar), nem sempre desempenhou este papel na civilização ocidental.[3]

A heterotopia das casas de prostituição é substituída por uma teia de ligações menos visíveis geradas pelo poder da tecnologia, pelo advento dos telefones e da possibilidades de se reconstruir uma rede de prostituição através de contatos distantes, através da permanência na residência, sem necessidade de exposição. Uma nova heterotopia emerge a partir das novas formas que o poder adquire em seus meios de transmissão.

Já o exemplo dos cemitérios pede um pouco mais de atenção:

Até o século XVIII, ele ficava no centro da cidade, disposto lá no meio, bem ao lado da igreja: na verdade, não se lhe atribuía nenhum valor solene. À exceção de alguns indivíduos, o destino comum dos cadáveres era muito simplesmente serem jogados na vala, sem respeito ao despojo individual […] No final do século XVIII, começou-se a individualizar os esqueletos. Cada qual passou a ter direito ao seu caixão e à sua pequena decomposição pessoais.[4]

Geograficamente também há uma mudança, já que os cemitérios se afastam do centro das cidades e passam a ocupar espaços marginais, fora da cidade. Tudo se passa como se o cemitério tivesse se tornado o local de concentrar a morte, mas em conjunto a isso, o local do contágio. O corpo já entendido como parte integrante de uma espécie, a partir de um olhar biologicista mas também de um medo disciplinar. Já há sinais de aparecimento de um medo ao contágio, um medo à doença epidêmica, em conjunto a isso, um entendimento de que o corpo-indivíduo não é o único modelo de observação, já que emergem as considerações que tornam possível a existência do corpo-espécie.

Por outro lado, todos esses esqueletos, todos esses caixões, todos esses sepulcros, todas essas tumbas, todos esses cemitérios foram postos à parte, fora da cidade, no seu limite, como se se tratasse ao mesmo tempo de um centro e um lugar de infecção e, em certo sentido, de contágio da morte. Mas – não se pode esquecer – tudo isso só ocorreu no século XIX, mais precisamente, no decurso do Segundo Império.[5]

Foucault também cita os cemitérios para tuberculosos como heterotopia. O

cemitério permite, nos entremeios de sua subjetivação, pensar não somente o espaço ilusório do cemitério como uma forma de “resguardo da vida”, mas também como um paradoxismo referente à própria ideia de vida e de morte pela intersecção que o cemitério proporciona a estes dois âmbitos.[6]

Krüger Junior  também insere uma análise dos cemitérios a partir do texto O Nascimento da Medicina Social e expõe um novo nó que essa heterotopia faz emergir:

Somente após algum tempo, com a remodelação do campo sociológico, que os cemitérios passaram a ocupar as grandes periferias existentes na cidade, mesmo assim, com esta mudança, a heterotopia da vida e da morte manifestada pelo cemitério e pelas residências familiares não deixa de produzir o eterno embate da mortalidade versus a imortalidade no pensamento da memória perpétua que existe no cerne da construção monumental do cemitério.[7]

É possível compreender o cemitério como exemplo perfeito de remodelação de um espaço físico já existente, reconstrução de seu lugar do ponto de vista sociológico, reconsideração da relação entre vida e morte do ponto de vista filosófico e, portanto, alteração no discurso que entrega o cemitério como um lugar socialmente significável e previsível. Uma transformação que desbanaliza o cemitério e cancela a morte, purificando a cidade do contágio.

As heterotopias, portanto, não são estrutura fixas e, sendo contraespaços, também assumem novas formas nos mesmos lugares físicos ou através dos mesmos rituais que, ao longo do tempo ou de lugar em lugar, tendem a se modificar simbolicamente e concretamente. São espaços que morrem e nascem a depender das condições entre relações de poder e tipos de saber em um dado período num espaço determinado.


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Figuras do desatino

Referências

[1] FOUCAULT, Michel. O corpo utópico / As heterotopias. Tradução de Salma Tannus Muchail. 1ª edição, São Paulo: N-1 edições, 2013, p. 22.

[2] PEREIRA, Karoline M. F. Corpo, interdição e heterotopia: a nudez do corpo da mulher no discurso da propaganda turística oficial brasileira. Dissertação de mestrado, Programa de pós-graduação em linguística do Centro de ciências humanas, Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), 2015, p. 54.

[3] FOUCAULT, Michel. O corpo utópico / As heterotopias… p. 22.

[4] FOUCAULT, Michel. O corpo utópico / As heterotopias… p. 23.

[5] FOUCAULT, Michel. O corpo utópico / As heterotopias… p. 23.

[6] KRÜGER JUNIOR, D. A. Foucault: a heterotopia como alternativa para pensar o espaço social. Revista Enciclopédia, Pelotas, V. 05, 2016, p. 31.

[7] KRÜGER JUNIOR, D. A. Foucault: a heterotopia como alternativa para pensar o espaço social… p. 32.

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