Três características de nossa época – Achille Mbembe

No caminho oposto a uma visão dos efeitos da globalização nas metrópoles e nos locais dominados, Achille Mbembe caracteriza nossa época a partir de um olhar à migração, ao movimento dos corpos entre os territórios nacionais, um olhar à política que é feita sobre os corpos dominados, que os fabrica, a partir de um olhar sobre as condições materiais de realização da política moderna que, em alguns momentos, tende à necropolítica.

Da série “Necropolítica“.

Índice

Introdução

Em sua análise das democracias contemporâneas presente em Políticas da Inimizade, Achille Mbembe enumera três características centrais de nossa época que seria parte da existência de formas de governo que precisam lidar com territórios exteriores ao do Estado-nação.

Ao contrário dos diagnósticos focados na expansão da globalização e nas mudanças da pós-modernidade enquanto nova forma do sistema capitalista, os caracteres “líquidos” da contemporaneidade são colocados em perspectiva a partir da dinâmica vivida por aqueles que se encontram justamente nos territórios ou nas populações submetidas historicamente ao colonialismo e às guerras de dominação em seus locais.


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A migração

Essa nova dispersão, que veio se juntar às ondas migratórias anteriores, provenientes do Sul, embaralhou os critérios de pertença nacional. Pertencer à nação já não é apenas uma questão de origem, mas também de escolha. Uma massa incessantemente crescente de pessoas participa atualmente de diversos tipos de nacionalidade (de origem, de residência, de escolha) e de vínculos identitários. Em certos casos, elas são instadas a se decidir, a se fundir com a população colocando um fim às duplas lealdades, ou, em caso de delito que coloque em perigo a “existência da nação”, correm o risco de serem despojadas da nacionalidade de acolhimento.[1]

Dentre as três categorias de pertencimento, adiciona-se uma, inicialmente estranha às duas primeiras: a escolha. Se o pertencimento é uma questão de escolha, há possibilidade de se entender o campo do pertencimento como uma parte da esfera do consumo, na medida em que esta esfera é organizada como local de prática da liberdade do indivíduo contemporâneo.  No entanto, esta escolha se dá num contexto de migração em que “as novas dinâmicas circulatórias e a formação das diásporas passam, em grande medida, pelo comércio ou pelos negócios, pelas guerras, pelos desastres ecológicos e catástrofes ambientais e pelas transferências culturais de todo tipo”[2].

Ao contrário das explosões migratórias do século XIX, agora, o excedente de população não é europeu. As colônias não estão recebendo europeus, mas a Europa passou a ser o alvo da circulação humana.

Particularmente a Europa e os Estados Unidos se mantêm como importantes pontos de fixação das multidões em movimento, especialmente daquelas que vêm dos centros de pobreza do planeta.[3]

Um movimento centrípeto de migração que se concentra nos dois polos do Ocidente e que, aos poucos cria uma composição em mosaico do território. Que transforma em, no limite, “escolha” o pertencimento nacional.

O humano

O segundo traço característico do nosso tempo é a redefinição – em curso – do humano no quadro de uma ecologia geral e de uma geografia doravante ampliada, esférica, irreversivelmente global. De fato, o mundo já não é considerado apenas como um artefato que o ser humano fabrica. Tendo saído da Idade da Pedra e da Prata, do Ferro e do Ouro, o ser humano, por seu turno, hoje tende a se tornar plástico. O advento do homem plástico e de seu corolário, o sujeito digital, vai diretamente de encontro com inúmeras convicções tidas até recentemente como verdades imutáveis.[4]

Base material geográfica, mas também o papel geográfico em que se situa toda e qualquer relação social, traço cultural, etc., torna possível o nascimento de um novo sujeito. Aqui, Mbembe o descreve como digital. O sujeito digital é, concretamente, o desafio a um certo número de crenças populares até então aceitas:

É o caso da crença segundo a qual existiria algo “propriamente humano”, um “homem genérico”, que seria distinguível do animal e do mundo vegetal; ou então que a Terra que ele habita e explora seria apenas um objeto passivo de suas intervenções. É também o caso da ideia de que, de todas as espécies vivas, o “gênero humano” seria a única a ter se libertado parcialmente de sua animalidade. Rompidas as cadeias da necessidade biológica, ele teria sido alçado praticamente à altura do divino.[5]

No momento da mistura, o universal desaparece e se compreende que só é possível existir um universal a partir da destruição da epistemologia e da ontologia das populações dominadas, das populações colonizadas ao longo do século e que, hoje, ainda pagam o preço de terem sido alvo da colonização europeia ou da dominação estadunidense. Mas para além disso, a vida humana se essência universal é um pilar ontológico que nasce da própria aproximação da engenharia genética e da biologia em que “considera-se perfeitamente possível não apenas aprimorar  o ser humano (enhancement), mas também, num espetacular ato de autocriação, produzir a vida pela via da tecnomedicina”[6].

O digital

O terceiro traço constitutivo da época é a introdução generalizada de ferramentas e máquinas calculadoras ou computacionais em todos os aspectos da vida social. Com a força e a ubiquidade do fenômeno digital, não existe mais separação estanque entre a tela e a vida. A vida se passa agora na tela se tornou a forma plástica e simulada da vida, que, aliás, agora pode ser abarcada por um código. Além disso, “não é mais pela confrontação com o retrato ou com a figura do duplo apresentada pelo espelho que se põe à prova o sujeito, mas pela construção de uma forma de presença do sujeito mais próxima do decalque e da sombra projetada” (Claire Larsonneur, Le Sujet Digital).[7]

O nascimento de dispositivos que encurtam espaço e tempo, que tornam as medidas espaciais distantes da realidade informacional, também transformaram a própria forma-sujeito, que se caracteriza, nas palavras de Mbembe, como sujeito digital. Um sujeito que já não pode mais ser separado pelo espaço nem contido pelo tempo.

De repente se vê precluída uma parte do trabalho de subjetivação e de individuação por meio do qual, ainda recentemente, todo ser humano se tornava uma pessoa dotada de uma identidade mais ou menos indexável. Quer se queira ou não, a era será, pois, a da plasticidade, a da inseminação e a de todos os tipos de enxertos.[8]

E, aqui, o vislumbre de uma realidade, talvez, cyborg.

Considerações finais

No caminho oposto a uma visão dos efeitos da globalização nas metrópoles e nos locais dominados, Achille Mbembe caracteriza nossa época a partir de um olhar à migração, ao movimento dos corpos entre os territórios nacionais, um olhar à política que é feita sobre os corpos dominados, que os fabrica, a partir de um olhar sobre as condições materiais de realização da política moderna que, em alguns momentos, tende à necropolítica.

Referências

[1] MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. São Paulo, SP: N-1 edições, 2020, p. 31.

[2] MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade… p. 30.

[3] MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade… p. 30.

[4] MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade… p. 32.

[5] MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade… p. 32.

[6] MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade… p. 33.

[7] MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade… p. 33.

[8] MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade… p. 33.

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