Da série “O pastorado“.
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Índice
Introdução
O poder pastoral é uma estratégia específica que, nos escritos de Michel Foucault, é descrita como momento anterior à biopolítica e à governamentalidade. Um momento anterior que durou cerca de treze séculos e foi capitaneada pela Igreja Católica.
Trata-se de uma estratégia de poder na medida em que não é conduzida por um estrategista específico, por uma consciência que, através de sua clareza política, imporia movimentos políticos específicos para alcançar determinados fins. Trata-se de uma estratégia que se faz presente em sua eficiência e em sua organicidade, em se fazer como base por onde as relações de poder emergem em suas contradições. Uma estratégia que foi historicamente implementada, aplicada e modificada.
O objetivo deste artigo é descrever a noção de poder pastoral em Michel Foucault através de seus escritos em Segurança, Território, População.
O início
O poder pastoral remonta religiões do mediterrâneo, com a noção de que Deus é um pastor e seus fiéis, seu rebanho. Há uma discussão específica, inclusive, entre o pastor como entendido pelos assírios, egípcios, mesopotâmicos e hebreus e o entendimento grego do pastorado e de sua função na sociedade:
Primeiramente, a ideia e a organização de um poder pastoral. Que o rei, o deus ou o chefe seja um pastor em relação aos homens, que são como seu rebanho, é um tema que encontramos com bastante frequência em todo o Oriente mediterrâneo. Encontramos no Egito, encontramos na Assíria e na Mesopotâmia, encontramos também e principalmente, claro, entre os hebreus.[1]
Enquanto seguiu tendências do pastorado nas sociedades do Oriente, na Grécia este conceito não se desenvolveu e o modelo de poder da tecelagem, da maneira como aparece em Platão, na Política, foi adotado. O poder pastoral só emergiu como forma dominante de exercício do poder com a ascensão do cristianismo enquanto instituição religiosa e política:
O pastorado começa com certo processo que, este sim, é absolutamente único na história e de que sem dúvida não encontramos nenhum exemplo em nenhuma outra civilização: processo pelo qual uma religião, uma comunidade religiosa se constituiu como Igreja, isto é, como uma instituição que aspira ao governo dos homens em sua vida cotidiana a pretexto de levá-los à vida eterna no outro mundo, e isso na escala não apenas de um grupo definido, não apenas de uma cidade ou de um Estado, mas de toda a humanidade.[2]
A salvação enquanto objetivo aplicado à toda humanidade, pois toda humanidade é alvo da possível conversão ao cristianismo, pois a administração da vida em seu sentido político e econômico é uma responsabilidade do pastor e que, através dos pecados da carne, se impõe sobre os corpos humanos. Segundo Erika Pretes e Túlio Vianna:
Os cristãos são responsáveis, sim, pelo desenvolvimento de uma nova forma de poder político sobre os homens, poder este que tinha nos pecados da carne seu alvo primordial.[3]
A Igreja é a instituição que representa uma religião com aspiração “ao governo cotidiano dos homens em sua vida real a pretexto da sua salvação”[4]. Para Foucault, não há nenhum outro exemplo parecido na história da humanidade.
O bem
Este tipo específico de poder se exerce sobre todos os indivíduos coletivamente e individualmente. Tanto na insignificância de um indivíduo, como na grandeza da união de todos os indivíduos no rebanho. Não há poder pastoral sem um pastor e um rebanho e não há pastorado sem a consideração tanto coletiva deste rebanho como individual de cada ovelha participante. Ao contrário do poder exercido pelos monarcas absolutistas, o poder pastoral não se aplica a um território:
O poder do pastor é um poder que não se exerce sobre um território, é um poder que, por definição, se exerce sobre um rebanho, mais exatamente sobre o rebanho em seu deslocamento, no movimento que o faz ir de um ponto a outro. O poder do pastor se exerce essencialmente sobre uma multiplicidade em movimento. O deus grego é um deus territorial, um deus intra muros. tem seu lugar privilegiado, seja sua cidade, seja seu templo. O Deus hebraico, ao contrário, é o Deus que caminha, o Deus que se desloca, o Deus que erra.[5]
Um rebanho que se move em direção da sobrevivência, do bem-estar, da salvação, afinal, se a primeira característica do poder pastoral é não ser exercido sobre um território, mas sobre uma população, sua segunda característica é que seu exercício é sempre em direção do bem: “o poder pastoral é fundamentalmente um poder benfazejo”[6], diferentemente do tipo de poder que era compreendido pelo exercício dos deuses gregos, em que o bem é uma
característica universal, mas com o detalhe de que esse dever de fazer o bem, em todo caso no pensamento grego e creio que também no pensamento romano, não passa afinal de contas de um dos componentes, dentre muitos outros traços, que caracterizam o poder. O poder vai se caracterizar, tanto quanto por seu bem-fazer, por sua onipotência, pela riqueza e por todo o fulgor dos símbolos de que se cerca. O poder vai se definir por sua capacidade de triunfar sobre os inimigos, de derrotá-los de reduzi-los à escravidão. O poder se definirá também pela possibilidade de conquistar e por todo o conjunto dos territórios, riquezas, etc., que terá acumulado. O bem-fazer é apenas uma das características em todo esse feixe pelo qual o poder é definido.[7]
Já no poder pastoral, seu benfazejo é sua única característica: trata-se de um poder que se move ao bem-estar de cada indivíduo e do coletivo como um todo: o pastor guia cada indivíduo no caminho da salvação, enquanto o coletivo, inteiro, é guiado em conjunto para este caminho.
Sendo o poder pastoral, a meu ver, inteiramente definido por seu bem-fazer, ele não tem outra razão de ser senão fazer o bem. É que, de fato, o objetivo essencial, para o poder pastoral, é a salvação do rebanho.[8]
Trata-se, portanto, de um poder benfazejo que guia um coletivo à salvação, a um objetivo compartilhado individualmente e constituído coletivamente. Não há força e superioridade implicada na aplicação do poder pastoral, mas conquista através do zelo, obediência através do objetivo comum, obediência ao pastor eleito por Deus para guiar seu povo. Segundo Foucault “o poder pastoral se manifesta inicialmente pro seu zelo, sua dedicação, sua aplicação infinita”[9].
Sendo assim, inicialmente:
- O poder pastoral não atua sobre um território, não se aplica a demarcações geográficas ou fronteiriças: ele se aplica, principalmente, sobre o rebanho, sobre uma coletividade, sobre um agrupamento de indivíduos. O poder pastoral é um poder de movimento, não de fixação, pois trata-se de um poder que guia o agrupamento a um caminho da salvação em vez de fixá-lo num território com objetivo de aproveitar de sua força de trabalho ou de constituir uma força militar;
- O poder pastoral não se manifesta na força ou na violência: trata-se de um poder benfazejo, de um poder que se manifesta pelo bem, pelo cuidado, pela entrega e pelo zelo infinito.
Todos e cada um
O cuidado específico do poder pastoral é exercido através de uma rede de compromissos em que o pastor é compromissado a entregar sua vida à função de pastor, aos cuidados do rebanho e, ao mesmo tempo, cada indivíduo do agrupamento é compromissado a obedecer o pastor com a confiança de que o caminho em que são guiados é o caminho entregue pelo próprio Deus ao pastor, é o caminho da verdade.
A ideia de um poder pastoral é a ideia de um poder que se exerce mais sobre uma multiplicidade do que sobre um território. É um poder que guia para um objetivo e serve de intermediário rumo a esse objetivo.[10]
Uma multiplicidade. Um conjunto de sujeitos diferentes que caminham, humildemente, junto a seu pastor. O pastor, por sua vez, tem o dever de punir os indivíduos que não se assujeitarem aos desígnios do poder. Tem o dever de retirar indivíduos rebeldes, indivíduos que não se adequam ao caminho da graça que ele é intermediário. Segundo Foucault, “Toda a preocupação do pastor é uma preocupação voltada para os outros, nunca para ele mesmo”[11], é uma preocupação sempre voltada para o bem estar de seu rebanho. O poder pastoral
É, portanto, um poder finalizado, um poder finalizado sobre aqueles mesmos sobre os quais se exerce, e não sobre uma unidade de tipo, de certo modo, superior, seja ela a cidade, o território, o Estado, o soberano […] É, enfim, um poder que visa ao mesmo tempo todos e cada um em sua paradoxal equivalência, e não a unidade superior formada pelo todo.[12]
A distância entre o coletivo e o indivíduo é nula, pois é a partir do cuidado com o indivíduo e com o todo ao mesmo tempo que o pastor se guia. O poder pastoral exige certa humildade de cada sujeito submetido a ele e só assim consegue manter essa relação de cuidado com todos e cada um. Cabe ao pastor demonstrar sua própria humildade e responsabilidade com o dever que lhe foi dado e ser responsável pela vida do rebanho e de cada indivíduo.
O poder, para o pastor, comporta o dever de responsabilizar-se pelas ovelhas. Essa ação de responsabilidade opera-se como técnica do cuidado, atrelada à noção de vigília […] a categoria de vigília abarca duas outras: a ideia de que o pastor trabalha pelo bem individual das ovelhas, isto é, que as conduz para as boas pastagens; e a noção de que o pastor vela pelo bem geral do rebanho. Ou seja, conhece as necessidades particulares de cada membro e as necessidades gerais do grupo.[13]
A sua vigilância é justificada pelo cuidado e o caminho que guia seu rebanho é justificado pela salvação. O pastor tem papel crucial, pois não aparece como sujeito que ordena arbitrariamente, mas como sujeito que é ordenado a ordenar e que, nesta hierarquia, carrega o maior fardo de todos: o de cuidar do rebanho.
Considerações finais
De maneira inicial, vê-se uma condução de condutas, um início de governamentalidade, um início de poder que se exerce não sobre as coisas, mas sobre os recursos e que não tem um fim privado, mas coletivo e, de certa forma, seu objetivo submete não só os membros do rebanho, mas também o pastor. Um tipo de governo que se faz quase que anonimamente, pois a figura do pastor é a de um transmissor encarregado de cuidar. Um transmissor que será responsável pelas possíveis perdas do rebanho, que será responsável pelo sucesso da caminhada, mas também de seu insucesso.
A institucionalização do pastorado na Igreja tem seu papel principal, também, em tornar o poder pastoral uma estratégia dominante pela Europa:
com essa institucionalização de uma religião como Igreja, forma-se assim, e devo dizer que muito rapidamente, pelo menos em suas linhas mestras, um dispositivo de poder que não cessou de se desenvolver e de se aperfeiçoar durante quinze séculos, digamos desde os séculos I, II depois de Jesus Cristo, até o século XVIII da nossa era. Esse poder pastoral, totalmente ligado à organização de uma religião como Igreja, a religião cristã como Igreja cristã, esse poder pastoral por certo transformou-se consideravelmente no curso desses quinze séculos de história.[14]
É possível perceber, no poder pastoral, o início do princípio de vigilância ostensiva, pois cada ovelha precisa ser controlada e encaminhada como responsabilidade máxima do pastor; um princípio de conhecimento geral do bem viver da população, ou seja, traços de um futuro dispositivo de segurança, que tem como objetivo medir as casualidades da realidade concreta, das ações humanas e do natureza sobre o humano para criar práticas sociais de intervenção que diminuam as intempéries sobre a população. Tem-se, também, a própria noção de população tomando forma, pois o rebanho é justamente um micro elemento do que viria a ser este elemento político.
O poder pastoral, então, é um poder que atua sobre o indivíduo e sobre o agrupamento com a mesma tenacidade. Se justifica pela busca da salvação, do objetivo compartilhado individualmente e coletivamente imposto. Tal poder necessita de um pastor que se faz como responsável pelo bem-estar do rebanho e, ao mesmo tempo, de um rebanho que humildemente obedece a ordem do pastor abdicando de sua vontade própria pelo objetivo maior da salvação. A própria abdicação é parte do caminho que o pastor guia. Por fim, trata-se de uma estratégia de poder que antecede a governamentalidade moderna, que fornece base para o que viria a ser a própria forma como os Estados modernos lidam com sua população.
Referências
[1] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População: curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 166.
[2] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 196.
[3] PRETES, Erika; VIANNA, Túlio. Do pastorado ao governo (bio)político dos homens: notas sobre uma genealogia da governamentabilidade. Rev. Epos, Rio de Janeiro , v. 5, n. 1, p. 131-156, jun. 2014 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2178-700X2014000100008&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 11 ago. 2023.
[4] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 196.
[5] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 168.
[6] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 169.
[7] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 169.
[8] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 169.
[9] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 171.
[10] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 173.
[11] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 171.
[12] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 173.
[13] OLIVEIRA, R. C. O poder pastoral em Michel Foucault: o paradoxo do governo e cuidado da vida humana. Dissertação de Mestrado, Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, Programa de pós-graduação em filosofia, 2019, p. 43.
[14] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 196.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.